Como esquecer dezenas de milhares de mortos?
É inquietante o que se lê na última declaração do Bureau Político do MPLA do ano passado a respeito dos acontecimentos de 27 de Maio de 1977 em Angola. O documento claramente se perfila como uma tentativa de escamotear responsabilidades sobre o que foi o plano criminal executado pelo Estado angolano entre 1977 e 79 e que teve por finalidade prender, sequestrar, torturar e exterminar, de forma sistemática e generalizada, cidadãos nacionais e estrangeiros supostamente considerados adversos ao regime de Agostinho Neto. Para quem em todos estes anos de independência nacional exerce o controle e a gestão do aparelho de Estado, é imoral e injusto vir agora dizer que a actuação das forças militares e policiais, apesar dos excessos, se ficou a dever simplesmente à "[...] incipiente organização e funcionamento das instituições e [ao] zelo dos seus principais agentes"; e que esses episódios, mitigados pelo tempo, são hoje uma página da História definitivamente encerrada. As cúpulas do MPLA, na verdade, parecem ofuscadas pelas teias do seu próprio poder e incapazes de entender que nem tudo foi esquecido, nem as pessoas se deixaram afundar numa amnésia colectiva total. As famílias na intimidade continuam a lembrar os seus parentes desaparecidos no decurso desses anos de terror e a interrogar-se por que razão as autoridades não lhes dão uma satisfação. Elas precisam saber do destino dos seus entes queridos. Onde param os seus restos mortais? Uma parte dos desaparecidos morreu devido a torturas sofridas em centros de detenção. Outros foram passados pelas armas e os seus corpos jogados em fossas clandestinas. Todavia, houve vítimas cujos cadáveres se torna impossível recuperar. Os exterminadores cremaram os despojos ou lançaram-nos ao mar. Mais de mil desaparecidos se acham sepultados no fundo do oceano. Uma chacina inominável.Como é possível - pergunto - desvalorizar tais episódios e passar uma esponja por cima deles? No final dos anos oitenta, uma ilustre figura do meio social luandense, já falecida, que se bateu pela libertação da pátria e purgou vários anos de cadeia no Tarrafal, em Cabo Verde, em conversa comigo lastimava: "Estou magoado com os senhores do MPLA. Mataram-me dois filhos e até hoje nem uma palavra. Tão-pouco uma certidão de óbito. Até ao fim da vida a minha alma não sossegará enquanto não me disserem onde os meus filhos jazem". Ignorar todas estas feridas significa menosprezar a sociedade civil e os seus mais recônditos queixumes e sofrimentos. Apenas um item se me afigura positivo nessa declaração do Bureau Político. Aquele que fala na necessidade de, no presente ou amanhã, se evitar que o país volte a descambar em métodos clandestinos e ilegais, "quer nas instituições partidárias, quer nas estaduais". Com efeito, foi com base nesses métodos que algumas cúpulas do poder civil e militar conspiraram e planearam, muito antes do 27 de Maio, a "eliminação e o desaparecimento sistemático de pessoas" que ideologicamente contrariavam os seus desígnios totalitários. Desde o princípio a conspiração contou com a ajuda de um certo órgão de imprensa, através do qual se espalharam notícias insidiosas contra um grupo rival do partido, que foi acusado de golpista e anti-Neto e responsável pelo desastre iminente do país. No entanto, o passo estratégico mais importante foi isolar o presidente da República que, impotente e doente, permitiu que os conspiradores, agrupados nas Forças Armadas e nos serviços de inteligência, passassem a comandar a repressão. Contudo, nem todas as pessoas ofendidas por essas arbitrariedades militavam no MPLA. Houve de tudo um pouco, prenderam-se e assassinaram-se membros da UNITA e da FNLA. E até pessoas sem partido. Na penitenciária de São Paulo, em Luanda, onde me forçaram a um cativeiro de dois anos e meio, vi adolescentes sujeitos aos tratamentos mais humilhantes que depois desapareceram. O rolo da repressão acabou por atingir segmentos inteiros da sociedade. Em Malanje, por exemplo, uma escola perdeu de repente dezenas de estudantes que foram metralhados a sangue-frio, à luz do dia, por um grupo de extermínio, cujos chefes respondiam a ordens dimanadas do Estado.Do ponto de vista dos direitos humanos é, portanto, uma injustiça social de gravíssimas proporções pretender ocultar o paradeiro de pessoas desaparecidas. Na origem dessas violações estão agentes superiores do Estado ou outras pessoas associadas que agiram em perfeita coordenação e utilizaram todos os instrumentos repressivos do Estado que tinham ao seu dispor. Deste modo, o problema dos desaparecidos é um problema da alçada do Estado que não se pode furtar à obrigação de responder aos apelos da sociedade sob pena de infringir princípios salvaguardados pelo Direito Internacional. Aliás, a Declaração das Nações Unidas sobre a "Protecção contra os Desaparecimentos Forçados", de 18 de Dezembro de 1992, é bem explícita no artigo 17.1: "todo o acto de desaparição forçado será considerado delito permanente enquanto os seus autores continuarem a ocultar a sorte e o paradeiro da pessoa desaparecida e enquanto não se esclarecerem os factos". Quer dizer: o efeito legal dos desaparecimentos forçados em Angola continua válido até hoje, pois, como acentuam os juristas, "ratione temporis" não se aplica a delitos permanentes. Por conseguinte, esse efeito legal só cessará quando aparecerem os corpos e, eventualmente, pessoas vivas.Já estou a imaginar o que certos oráculos obscuros irão profetizar: que é um atentado à "paz e à reconciliação nacional" levantar estas questões delicadas porque, segundo eles, são temporalmente inadequadas e passíveis de gerar mais ódio e divisões entre os angolanos. Falso argumento esse. Para citar Luis Pérez Aguirre (1941-2001), sacerdote jesuíta, uruguaio, "a paz não é um malabarismo de interesses egoístas. [...]. Não nasce de frios armistícios entre exaustos beligerantes. Nem sequer é pura coexistência e não se deleita com ambientes de 'guerra fria'". Diria antes ser uma agenda que se constrói em cima da verdade e da justiça social. Sem estes dois valores a Democracia não é possível. Em Angola a democracia é ainda uma miragem. Não obstante a democracia parlamentar, falta um Estado de Direito que dê espaço às vozes da cidadania. São estas vozes justamente que, na questão dos desaparecidos, podem vir a ter um papel central.Então, que solução? Siga-se o exemplo do Uruguai, que me parece ser o melhor, onde por determinação do presidente Jorge Battle se criou em 2000 uma "Comissão para a Paz" que se encarregou de abrir investigações sobre as pessoas desaparecidas durante a ditadura militar. O presidente José Eduardo dos Santos agora apostado, ao que tudo indica, em introduzir novas regras de governação democrática no país, poderá porventura ser o factor decisivo na abertura desta agenda dos direitos humanos. Se não for ele, com certeza será outro presidente no futuro. O objectivo, na minha opinião, não é penalizar os responsáveis pelas violações aqui enumeradas. Em nome da pacificação dos espíritos, considero que ninguém deve ser imputado, convocado ou conduzido ante um tribunal a fim de prestar declarações. Os militares deverão, sim, ser chamados pelo presidente a integrar uma comissão de investigação e auxiliar na localização das covas onde se enterraram cadáveres. Concordo que será um cenário complicado, com várias etapas mais ou menos longas, possivelmente de anos, mas só o diálogo sereno e construtivo permitirá aos vários actores desse processo - políticos, militares e a própria sociedade civil - estabelecer consensos e contrapartidas. Por fim, localizadas as ossadas, seria de justiça que as mesmas fossem removidas para um local condigno - uma tumba comum -, onde se poderia erigir um memorial a lembrar que tragédias como a do 27 de Maio nunca mais se deverão repetir em Angola.