Cannes: Todos os caminhos vão dar à América
Entre as afirmações que farão a (pequena?) história da 56ª edição de Cannes, umas mais profundas, outras inefáveis - é escolher a categoria para o anúncio de Nicole Kidman de que qualquer dia muda de vida -, vai ficar esta: "Sou americano". Quem a proferiu foi o realizador Lars von Trier. Que é dinamarquês. Que nunca foi à América. E que por isso fez um filme, "Dogville", que se passa nas Rocky Mountains, EUA, o primeiro de uma trilogia que intitulou "US of A". "Na Dinamarca, 80 por cento da informação nos jornais e na televisão é sobre a América. É uma América em segunda mão a do meu filme, mas isso é que é interessante", disse o dinamarquês.Não aconteceu só com von Trier. Partindo de Cannes, vários caminhos foram dar aos EUA, que estiveram no imaginário do festival muito para além das produções americanas presentes (em competição houve três). Na Croisette, a América foi objecto de confronto, mas foi também espaço de reconhecimento e fascínio - era só escolher o lugar. A sua força foi também mostrar-se frágil. Este não foi o primeiro Festival de Cannes depois do 11 de Setembro. Mas foi o primeiro a receber os filmes que já foram capazes de se deixar possuir pelas sombras dos novos tempos.Em "Les Invasions Barbares", do canadiano Denys Arcand, exibido em competição, um grupo de intelectuais do Quebeque às voltas com as suas vidas vê-se como um pólo de resistência cultural ao "american way of life". "Sequela" de um filme de 1986 - que se chamava, significativamente, "O Declínio do Império Americano" -, fala de uma América como um império de símbolos que está a ser ameaçado pelos "bárbaros", concretizando assim a profecia lançada pelo filme anterior. Curiosamente, "Les Invasions Barbares" é feito com um formato "americano", no sentido universal: a "sitcom".Foi também para questionar o império - expondo-o à dúvida moral - que o documentarista Errol Morris entrevistou, em "The Fog of War" (exibido fora de concurso), o ex-secretário de Defesa de John F. Kennedy e de Lyndon Johnson, o homem da máquina de guerra durante a crise dos mísseis de Cuba e o conflito do Vietname, Robert MacNamara. Mas houve uma América nostálgica de esplendores do passado, a América de "Bright Leaves", belíssimo documentário de Ross McElwee (Quinzena dos Realizadores). É um espaço de mito, que só pode existir no cinema. E é disso que vai à procura McElwee, encontrando para o seu "home movie", para a crónica familiar que realiza, um espaço de cintilação: descendente de uma família que dera cartas no negócio do tabaco no Sul americano, descobre que um filme da Hollywood dos anos 30 se teria inspirado nos seus antepassados. O encontro entre a estrada do tabaco e Hollywood é melancólico e irónico, suficientemente púdico para arriscar a elegia. Como "American Splendor", de Shari Springer Bertman e Robert Pulcini (secção Un Certain Regard), biografia de uma figura da contra-cultura americana dos anos 70, Harvey Pekar, autor de BD. Não se pode esquecer também que, na Quinzena dos Realizadores, Alexandra Lencastre foi "A Mulher que Acreditava Ser Presidente dos EUA" (filme de João Botelho).As batalhas do pró e do contraNa competição, houve três produções americanas: "Elephant", de Gus Van Sant, "The Brown Bunny", de Vincent Gallo, e "Mystic River", de Clint Eastwood. Duas experiências de risco e a serenidade crepuscular do último dos clássicos. Que foi o mais consensual, ao contar uma história de três homens derrotados. Gallo, um "easy rider" do narcisismo e a sua hipnótica viagem pelas estradas da América, foi o escândalo. Para uns, "o pior filme do festival dos últimos 10 anos" é um OVNI, como se tivesse saído dos anos 70, das mãos de Monte Hellman. "Elephant", por sua vez, é um voo sobre um liceu americano, antes de uma catástrofe como a de Columbine. Mas é menos o liceu americano, e mais "o liceu" (como se todos pudéssemos dizer: "eu sou de Columbine"). E, claro, a América inventada de "Dogville" também pertence ao imaginário de todos.Os programadores do festival, que hoje termina, escolheram os filmes em plena "crise iraquiana", quando se agudizavam as divergências entre EUA e França. Disse-se que por isso os americanos não quereriam estar em Cannes, com medo de serem mal recebidos. Mas estiveram. Só que as divergências e o mal-estar instalaram-se na Croisette. Tiveram como objecto "Elephant" e "Dogville". Tornaram-se visíveis nas páginas da imprensa, de tal forma que o diário "Libération" falou numa "barreira intransponível" - mais do que cultural, uma "diferença de cromossomas" - entre a França (a Europa) e a América.Os americanos não gostaram de "Elephant", os franceses adoraram. Para os americanos, "Elephant" "não tem ponto de vista", é uma afectação de um "mood" atmosférico, um tique inconsequente. Os europeus reconheceram-se na abstracção, na recusa do realizador em estabelecer nexos de causa e efeito para Columbine - com a ausência de uma narrativa de catarse e redenção. Em "Dogville", o dinamarquês imagina uma cidade americana, durante a depressão, que recebe de braços abertos uma foragida (Nicole Kidman), para depois a explorar e violentar. É um concentrado do cinema, do teatro e da literatura americanos. O "décor" negro, a ausência de adereços, como uma minimalista encenação de teatro televisivo, funciona como tela em branco, onde o espectador pode projectar a sua América mítica.Segundo a revista da indústria americana, a "Variety", o filme é um ataque geral, ideológico e apocalíptico, contra os valores americanos. Lars von Trier julga a América e castiga-a com a aniquilação imediata. É uma acusação dirigida contra uma nação inteira, condenando como indigno habitar um país que atraiu mais gente para as suas terras como nenhum outro. A "Variety" respondia assim a estas declarações de Lars von Trier: "Na verdade, não sei nada sobre a América. Sou apenas um espelho de uma série de informações. Sei que gostaria de lá ir, mas tenho medo. Porque acho que a América não devia ser como é. Não me venham chamar comunista, que não sou, pelo que vou dizer a seguir, mas há muita merda na América. Já houve o slogan 'Free Iraq', eu proponho 'Free America'". E proferiria então as suas famosas palavras: "Eu sou americano", mostrando que a recusa convive com o fascínio. Houve (um americano) quem lhe chamasse logo ali "taliban", a mesma coisa, aliás, que a iraniana Samira Makhmalbaf chamara a George Bush.À psicose proteccionista da imprensa referia-se Vincent Gallo, cujo filme foi condenado pelos críticos americanos, o que vai tornar quase impossível a sua exibição nesse mercado. O actor Stellan Skarsgard, um dos intérpretes de "Dogville", foi mais longe: "O governo americano é muito à direita. Apoiando-se nos acontecimentos do 11 de Setembro, está à beira de criar uma espécie de totalitarismo. Hoje ninguém pode fazer críticas sem ser acusado de traidor ou de inimigo da América" - não por acaso, dois actores americanos acusados de falta de patriotismo no seu país pelas críticas a Bush e à intervenção no Iraque estão no genérico do filme de Clint Eastwood: Sean Penn e Tim Robbins. E Skarsgard continuou: "Esta recusa do diálogo cria uma situação perigosa. Adoro este país, e não sou anti-americano. Uma vez fizeram-me uma pergunta: 'Não gosta dos americanos?'. Respondi que se podia gostar de um batido mas não tínhamos necessariamente que o misturar com a salada".Isto tudo para dizer que se "Dogville" ganhar a Palma de Ouro em Cannes - ou qualquer um dos filmes em competição aqui referidos -, quem ganha é a América.