Há gente em Timor que ainda não viu um dólar

Envoltos em nuvens de pó levantadas pelos pés que arrastam pelo chão de terra batida do terreiro da casa de Xavier do Amaral, situada na avenida marginal de Díli, grupos de jovens dançam e entoam cânticos nacionalistas misturados com versos em louvor do primeiro presidente da Fretilin e da proclamação unilateral da independência de Timor-Leste em 28 de Novembro de 1975. "Se não foi o povo quem venceu a guerra/quem venceu a guerra?", perguntam os cantores de um dos grupos. "Se não foi Xavier do Amaral quem proclamou primeiro a independência, quem foi que a proclamou?", desafiam os cantores de outro grupo. Sentado a uma mesa coberta por um pano tradicional, o antigo presidente da Fretilin, partido de que foi expulso depois da invasão indonésia, acusado de "traição" por se ter rendido ao inimigo, bate palmas e troca impressões, sorrindente, com políticos e deputados de vários partidos que o ladeiam na tribuna. A festa, testemunhada por centenas de ruidosos apoiantes, ocorre menos de duas horas depois da cerimónia oficial com que as autoridades e milhares de pessoas comemoraram, ali a poucas centenas de metros de distância, o primeiro ano da independência de Timor Lorosae. Embalados pelo precedente que constituiu o reconhecimento pelo parlamento de que a mediática cerimónia de há um ano não foi mais do que a "restauração" da independência, os apoiantes de Xavier do Amaral, hoje com 71 anos, tentam que ao primeiro presidente da Fretilin seja reconhecida a qualidade de antigo Chefe de Estado de Timor-Leste, já atribuída a Nicolau Lobato, seu sucessor a partir de 1976.Depois das canções e dos discursos, os convidados são conduzidos para um pátio interior, onde os espera um bolo de duplo aniversário, com as bandeiras da Fretilin e da ASDT. Rezado um Pai Nosso e invocada "Nossa Senhora do Rosário de Fátima" pela mulher de Xavier do Amaral, crianças rebentam os balões que enfeitam o palco enquanto o homenageado oferece a cada um dos deputados e líderes partidários presentes uma taça de espumante Raposeira. Uma resolução neste sentido vai ser discutida no Parlamento, esta sexta-feira, 23. A presença activa na cerimónia de dois deputados da Fretilin, que se opõe à iniciativa, indicia que a força política maioritária no país se poderá dividir na hora da votação. O carinho com que a deputada da UDT, Quitéria da Costa, 35 anos, se dirige publicamente ao "avô Xavier" mostra igualmente como velhas querelas de há três décadas - a UDT nunca aceitou a proclamação da independência pela Fretilin - estão em vias de deixar de fazer sentido para a geração mais jovem de políticos timorenses.O sim à resolução dará a Xavier do Amaral um lugar no Conselho de Estado (de que faz parte já o antigo administrador apostólico de Díli e Nobel das Paz, Carlos Ximenes Belo), um gabinete, automóvel e uma pequena pensão. Mas representará, sobretudo, uma vitória da ala radical da Fretilin, que sempre sustentou que Timor era independente desde 1975. Embora já consagrada constitucionalmente, a tese, a ser levada às últimas consequências, poderá ter implicações político-jurídicas ainda não totalmente avaliadas. Entre os convidados de Xavier do Amaral encontrava-se o presidente do partido Kota, Francisco Leão do Amaral. Liurai (chefe tradicional) de Luca, na região de Viqueque, Leão do Amaral, 80 anos, leu ao enviado do PÚBLICO um apelo "ao bom entendimento entre todos os timorenses", e queixou-se da situação das populações da montanha. "É preciso que o dólar 'rasteje' até ao interior", disse, brincando com o significado da palavra em tétum. "Alguns lá para Viqueque, em dois anos, nem sequer viram uma nota de dólar". No seu discurso - o único que se ouviu durante toda a cerimónia oficial comemorativa da independência, em Díli - Xanana Gusmão referira-se às dificuldades do povo do interior, dizendo que a "gradual erradicação da pobreza" no país "deve tornar-se na prioridade número um". Há, disse, "um sentimento latente de frustração e de desgaste de energia mental e psicológica de espera por algum acto mais concreto e melhor direccionado". Os mais velhos, "carcomidos pela idade e pela miséria", esperam "antes de morrerem", pela oportunidade de sorrirem pela "alegria de certo conforto". O presidente timorense, porém, colocou o acento tónico da sua intervenção nas "dificuldades inerentes ao princípio de qualquer processo social e político". O panorama social em Timor-Leste "é de estabilidade", não devendo a violência "nalguns lados e a do passado mês de Dezembro [quando populares ocuparam durante horas as ruas de Díli, fazendo lembrar os piores momentos de Setembro de 1999] ser apontadas como o barómetro da situação". O tom conciliador do discurso de Xanana contrastou com as críticas da sua "mensagem à nação" do dia anterior (ver PÚBLICO de ontem). Contudo, as diferenças entre uma e outro dificilmente terão sido apercebidas pelos presentes. Uma falha no sistema de intalação sonora impediu que os milhares de pessoas que se aglomeraram, ao sol, na praça Nicolau Lobato (antiga praça Infante D. Henrique), ouvissem as palavras presidenciais.

Sugerir correcção