"Apaixonei-me mesmo pela Lillias"
Entra, afogueada do calor, no bar velho da Faculdade de Letras de Lisboa, com um chapéu azul na cabeça e óculos escuros por causa das alergias primaveris. Não era um bom dia para escrever um livro. Na esplanada, o sol está a pique e Hélia Correia gosta de escrever com chuva. É um "fenómeno de corrente de energia", que emerge da mesma forma com que faz jardinagem ou lê sobre história. Está a fazer uma pós-graduação em Coimbra, em cultura clássica e, pela "primeira vez na vida", estuda a sério. Quando tirou o curso de Filologia Românica, em Lisboa, no mesmo sítio onde está agora a beber uma garrafa de água, só ia às frequências.Hélia Correia assume a sua preguiça com convicção e acha-se uma "péssima entrevistada". Diz que tem problemas em elaborar um discurso inteligível sobre algo que, para ela, acontece "de vez em quando". Mas fala sobre "Lillias Fraser" e o sorriso acende-lhe o rosto.HÉLIA CORREIA - Normalmente não gosto dos meus livros, mas do "Lillias Fraser" gosto. Contudo, não sei se é o meu melhor romance.Não, ainda gosto dele. Também gosto do "Montedemo"; ainda. Nem sequer consigo equacionar de qual é que eu gosto mais, porque já nem sequer tenho todos os livros que escrevi no pensamento. Para mim, são indivíduos separados, não fazem parte de um grupo, no qual eu elejo o que gosto mais.Há uns que eu não gosto mesmo nada, nada, nada [risos]: "O Número dos Vivos", o "Soma"... Isto até é engraçado, porque as pessoas que gostam deles ficam muito zangadas. Mas o livro é o livro, caminha sozinho, faz as relações que quiser. Eu não tenho nada a ver com isso.Quando estava a escrever esses livros de que já não gosta, também não gostava deles na altura?Nunca gosto quando estou a escrever. Do "Lillias" sim, de resto não.O "Lillias Fraser" revela uma pesquisa histórica considerável...Não tem muita. A seguir a esta entrevista, vou falar sobre ele numa aula do [professor] Manuel Frias Martins e já lhe disse que vou ter outra vez problemas, porque as pessoas supõem que o livro tem um pré-texto que não existe. É sempre um sarilho para explicar isto.Primeiro, foi a minha viagem a Culloden e não teve nada a ver com escrita. Foi um passeio de lazer, um ano antes de começar a escrever, de busca de raízes, porque tenho sangue escocês. As afinidades que tenho com aquelas terras célticas devem-me ter caído todas em cima nessa viagem e foi por causa desse chamamento que fui lá.Sim, como um íman, muito especial. Mas não entrou literatura naquilo. Entrou literatura, mas não minha. Tentámos fazer o percurso pela Escócia que o [William] Wordsworth e a irmã Dorothy fizeram com o [Samuel Taylor] Colridge. A Dorothy fez um diário, de modo que a literatura que houve nessa viagem foi ir atrás do caminho deles. Como gosto muito de história, quando tomei conhecimento da tragédia de Culloden adquiri logo muita informação.Há uma parte fechada, mais ao género dos nossos museus, e um memorial, com o campo propriamente da batalha, que está intacto. É um monumento impressionante, ainda muito vivo. Os visitantes são sobretudo americanos que lá vão em busca das suas raízes. E depois tive o momento estranhíssimo, de ver aqueles quatro jovens, cheios de fúria escocesa independentista, de uma energia fortíssima, vestidos à escocês pós-Culloden, com o kilt.Sim? Ainda bem! Foi um momento que me impressionou muito, dentro de todo o itinerário escocês que fiz. Nessa altura, quis aprender tudo o que havia sobre Culloden. Não houve uma investigação histórica posterior.Não aconteceu nada. Estava escrever outra coisa, uma novelazinha, que nunca vai ser editada, porque eu ofereço-a em sacrifício à Lillias. Uma das coisas tem de desaparecer.Sobre uma espécie de memória genética que passa no sangue, isto é, sobre uma rapariga que, no decurso de uma viagem, feriu a mão num móvel muito antigo e a embrulhou num pano ensanguentado. A partir desse momento, foi como se a memória do pano passasse para o sangue dela e a rapariga começa a ficar completamente perturbada. Depois há uma viagem de reconhecimento a um sítio, em que ela devolve o pano e fica em paz. A novela está acabada, chegou até ao fim.É a flor que deu origem ao fruto Lillias, um deles tem de desaparecer. Mas durante a escrita dessa novela, imaginei, ou melhor, apareceu-me a menina donde proviria o tal sangue, assim aos "flashes". E depois ela começou a tomar conta de tudo. Vi-a mais nitidamente, a afastar-se do campo de Culloden, e comecei a escrever. Ao mesmo tempo, acabei a novela, porque ainda não tinha percebido na altura que a Lillias haveria de se transformar em romance. Apaixonei-me mesmo por ela. Foi das coisas que escrevi com mais envolvimento pessoal.Custou-lhe a separar-se da Lillias, quando acabou de escrever o romance?É engraçado, pela primeira vez na minha vida, custou. Acabei o "Lillias Fraser" na minha casa em Mafra, numa madrugada. Queria oferecer a disquete no dia seguinte - eram os anos do meu namorado! Fui-me então deitar, a pensar nela, para escrever no dia seguinte: normalmente, vejo o seguimento das coisas quando estou a adormecer. Mas interroguei-me: "E agora vou pensar em quê?" Foi aí que me apercebi da falta que me ia fazer. Nos outros livros, o fim da escrita costuma ser um alívio imenso, mas no caso da Lillias foi diferente.A Lillias é uma personagem muito misteriosa, inacessível até, mas percorremos com ela todos os seus caminhos. Como é que explica o facto de o leitor sentir uma grande empatia com uma figura tão opaca?Não sei. Este não é um romance psicológico, não revela uma vontade de estar por dentro de um personagem e ir acompanhando o seu interior. Se ela exerce algum fascínio sobre as outras pessoas também o exerceu sobre mim, que a viu de fora. Embora haja momentos em que eu consigo ver dentro dela, ela salvaguarda-se, inclusive de mim. Estou tão de fora como as outras pessoas.Acho que não. O romance histórico parte da história para o romance e aqui a história veio por arrasto, aliás muito violentamente. Percebi que era a Lillias no século XVIII...Sim, detesto-o! Não sei nada sobre o século XVIII, não gosto dele...Sim, mas não muito. Quando percebi que isto se passava no século XVIII, fiquei sem saber o que fazer. Mas a Lillias estava nesse século e eu tinha de ir ter com ela, não a podia tirar de lá. Fui para a Biblioteca Nacional, em pânico, a pensar como é que ia fazer a gestão de todo o conhecimento que ia adquirir. Justamente porque não se tratava de um romance histórico, as coisas não podiam ser debitadas, tinha de ser algo muito digerido, quase esquecido. Apanhei um susto com a bibliografia sobre a época pombalina, porque só o index dos títulos existentes sobre esse assunto já era, ele próprio, um livro enorme. Mas aquele não podia ser o caminho. Então optei por outra coisa, que já conhecia relativamente, porque tinha lido muita coisa a propósito de Sintra, uma das minhas paixões. Tinha bastante literatura em casa, de documentos autênticos, notas de viagem, sobretudo dos ingleses, que foram quem redigiu mais impressões sobre o século XVIII português. Comprei mais um livro ou dois, que tive a sorte de encontrar, com relatos autênticos sobre o terramoto [de 1755, em Lisboa]. E limitei-me a isso. A informação que tinha era essa, não teve como base uma pesquisa exaustiva.No final do romance, Blimunda Sete-Luas, personagem do "Memorial do Convento", aparece para socorrer Lillias. José Saramago salvou a Lillias?Penso sempre nos livros separados dos autores. Aliás, quando alguém me pergunta que autor é que eu gosto, digo sempre que não gosto de autores, mas de livros. O que é facto é que a Blimunda teve realmente esse papel de salvar a Lillias, mas eu vejo-a já muito emancipada do Saramago. Tenho uma relação muito bonita com ele e gosto muito de muitos dos seus livros. Mas não é uma procura de "beneplácito saramaguiano" que vejo quando a Blimunda aparece. Ela surge por ela, como um ser com vida própria. Podia ser de outro autor qualquer. Fiquei muito espantada, quando ela apareceu do fundo de uma casa baixinha com árvores. A primeira forma da escrita vem primeiro por visões e depois pela pauta propriamente dita da escrita. Vi a Lillias entrar, com uns embrulhinhos, umas trouxinhas, nessa casa, e no fundo da sala havia um vulto. Fiz uma espécie de "zoom", aproximei-me, olhei para a senhora e pensei: "Mas esta é a Blimunda, o que é que ela está aqui a fazer?" Fiquei muito desorientada, mas ela estava ali e eu não podia fazer nada. Não andei a puxar pela cabeça, a pensar o que é que havia de meter naquela altura da história.Falei com o José Saramago. Embora os livros sejam os livros, muito longe dos escritores, há a noção de direitos de autor. Não podia pegar na Blimunda assim e por isso falei com ele pessoalmente. Foi uma conversa muito engraçada, porque não sabia como é que lhe havia de explicar. Aliás, quando estou a escrever, fico muito confusa. Disse-lhe: "É uma menina, no século XVIII, que vem da Escócia para Portugal..." E ele completa imediatamente a minha frase: "...e encontra a Blimunda". Disse-lhe que sim e ele achou muita graça. Foi uma sequência lógica, como se fosse muito natural a Lillias encontrar a Blimunda, mais velha, claro (entretanto já tinham passado mais de trinta anos). É fascinante pensar nisto, porque há uma pessoa de quem eu gosto muito, que está a trabalhar sobre a Marquesa de Alorna e a quem eu disse que se calhar a Lillias e a marquesa se encontraram na rua! A partir do momento em que a personagem se torna viva, perco a noção de quem ela é e começo a imaginá-la como uma pessoa real. Isso dá momentos de ficção extraordinários.Como é que trabalha os "flashes" e as "visões" que tem ao escrever?O livro não tem uma arquitectura prévia, é uma deriva. Por exemplo, uma das coisas que mais admiro é a forma como a Agatha Christie conseguia conceber uma arquitectura romanesca prévia. Mas eu nem sequer penso nisso. Eu confio: sei que as coisas vão aparecer e vou atrás delas.Já me tem acontecido várias vezes: as coisas não aparecem e o romance pára. Comecei vários romances que não acabei, porque deixou de vir a frase ou o momento seguinte. Não tenho nenhum controlo sobre o enredo, nem sobre as personagens.Estou a escrever, muito devagarinho. Ontem escrevi uma frase, vá lá! Fiquei toda contente, já há muito tempo que não escrevia nada.Por superstição. Uma vez, estava a escrever um romance, do qual estava a gostar muito, excepcionalmente. Tinha até uma personagem chamada Violeta, que foi depois o nome da minha amada gatinha. Uma revista, dirigida pela Maria Teresa Horta, pediu-me uma pré-publicação. Dei-lha e o livro desapareceu. Já não consegui escrever mais nada e tive um desgosto enorme. Agora, não falo de nada, com medo que aconteça a mesma coisa.Não... Só escrevo para objectivos determinados, por exemplo, versos, quando alguém me pede a letra para uma canção, ou então em circuito marginal. O último poema que publiquei foi no ano passado, na editora da minha eleição, a Blacksun.Não. Não sou dramaturga. Escrevi duas peças de teatro clássico. Quero ver se escrevo mais uma, na vida. Mas não tenho a mínima relação com a escrita teatral, nem com a fala em palco. Aliás, faço pouco diálogo na ficção. Leio por temas. Confesso que leio muito pouco dos livros contemporâneos. Depois, fico com remorsos e leio uma quantidade deles de uma vez só. Muitos são de amigos meus e não faz sentido passar ao lado disso. Mas é mais por fôlegos. Neste momento, estou a reler "Os Irmãos Karamazov", de Dostoievski, que é uma das grandes minhas paixões, traduzido por Nina e Filipe Guerra, directamente do russo. No entanto, não estou a conseguir o encantamento que tenho quando leio Dostoievski, isto é, uma espécie de transformação química do Eu, de perda de identidade. Mas tive isso com o último livro que li antes deste, o "Retrato do Artista Quando Jovem", do James Joyce, que é um dos títulos da Colecção Mil Folhas.Acha que o leitor de "Lillias Fraser" teve essa transformação química ao ler o livro?Não... Isso só acontece com grandes escritores e com grandes obras!