Com "Dogville" Lars von Trier provoca ondas de admiração em Cannes
Mesmo quem não gosta dele ou dos filmes dele, não pode evitar a admiração. É que algures entre o talentoso aldrabão, o mágico de feira de atracções e o neurótico cineasta (ainda há outra hipótese: o visionário) está o dinamarquês Lars von Trier, o realizador de 47 anos que se define assim: "Tenho medo de conferências de imprensa, mas não tenho medo de fazer filmes de formas estranhas."Há mais de uma semana que qualquer revista de cinema ou de espectáculos sobre Cannes destaca "Dogville". Nicole Kidman, intérprete principal, está, invariavelmente, na capa. Como há três anos aconteceu com Björk e "Dancer in the Dark". Ou seja, há um filme que se impõe como acontecimento antes de alguém o ver. Apetece embirrar com o cheiro a operação de "marketing". No entanto, depois de visto o filme, a confirmação surge fulgurante: é mesmo acontecimento. E é verdade: é um filme feito de forma estranha.Imagine-se um estúdio sem adereços, todo negro. Imagine-se uma cidade, com as ruas desenhadas no chão. A palavra chave, aqui, é "imagine-se...".As casas não têm portas, porque as casas não existem. Vemos apenas móveis (sobretudo, camas) espalhadas pelo estúdio. Ouvimos um cão ladrar, mas onde está o animal? Ei-lo: desenhado a giz no chão, com a palavra "Dog" a indicar. Há mais palavras escritas no chão, a indicar as casas e os nomes das personagens. Ouve-se Vivaldi e o vento, cai a neve, ouve-se o barulho dos passos sobre as pedras, um ou dois carros entram em estúdio, mas o espaço continua limpo de adereços, quase sempre negro.Quando uma personagem bate à porta de uma casa, ouve-se "toc, toc", mas o gesto é efectuado no vazio. E o cão ladra. De vez em quando, há um plano aéreo da cidade: é um mapa desenhado no chão, pisado por figuras humanas.É esta Dogville, uma cidade nas Rocky Mountains. É esta a América da Depressão, dos anos 30, imaginada por Lars von Trier num estúdio da Suécia. É povoada por Nicole Kidman, Lauren Bacall, Ben Gazzara, Stellan Skarsgard ou Chloe Sevigny, entre outros.É este o cenário de uma história sobre a maldade humana, em que toda uma cidade escraviza uma mulher (Grace/Kidman) que aí se refugiou quando fugia de uns "gangsters". Mas com "Dogville", que inicia uma nova trilogia na obra do realizador (ver texto nestas páginas), acabaram as mulheres sacrificiais e as vítimas. Aqui há uma vingança, há reviravolta para Grace.Neste filme que parece um ensaio, que parece algo que ficou na fase de leitura de argumento ("eu perguntei aos meus actores: 'Lembram-se de como é divertido fazer leitura dos argumentos, sem cenários e praticamente sem figurinos?' O filme vai ser assim", contou o realizador), a América é uma abstracção a partir do seu teatro e da sua literatura, de Mark Twain a Thornton Wilder. E a forma como esse imaginário é recriado faz com que seja completado pelas memórias e experiências do espectador. Eis, desde logo, o que o diferencia de "Dancer in the Dark", um filme também passado nos EUA: desta vez, Lars von Trier conseguiu criar um espaço, mental e mítico, que, como um pólo magnético, atrai as projecções pessoais e o imaginário do espectador.Há outra coisa diferente: "Dancer in the Dark" notabilizava-se pela vontade de fazer proeza (um musical), de rasgar as convenções e de violentar o espectador; "Dogville", experiência igualmente arriscada, mas mais madura, destaca-se pela inteligência e pela subtileza. Não obriga o espectador a sentir emoções (à custa das personagens); vai conquistando o espectador através de um processo, muito distanciado, muito "brechtiano", que simula o tempo insinuante das convenções teatrais e literárias ("Dogville" tem narrador e tudo, omnisciente e mordaz, numa homenagem ao "Barry Lyndon" de Kubrick).Não é preciso alguém ter ido à América para reconhecer esta América de "Dogville". Lars von Trier também nunca foi. Faz sentido, assim, que no genérico final expluda "Young Americans", de David Bowie, ou seja, o disco em que Bowie, em 1975, se inventou como cantor "soul", designando o que estava a fazer como "plastic soul". O realizador de "Dogville", quanto ao seu trabalho, diz que é um "filme de fusão"."O que me interessava era fazer um filme sobre a ideia de um país, em que nunca estive, e através dos meus sentimentos e daquilo que sei dele. Na verdade, eu sou americano: na Dinamarca, 80 por cento da informação nos jornais e na televisão é sobre a América. É uma América em segunda mão a do meu filme, mas isso é que é interessante."E é polémico: na cidade de Dogville, o género humano mostra-se às vezes como um cão arreganha os seus dentes. Da cobardia à intolerância, todas as cambiantes são possíveis. "Na verdade, é um filme sobre o Bem e sobre o Mal, que em qualquer momento pode irromper em qualquer um de nós. Na verdade, não sei nada sobre a América. Sou apenas um espelho de uma série de informações. Sei que gostaria de lá ir, mas tenho medo. Porque acho que a América não devia ser como era. Não me venham chamar comunista, que não sou, pelo que vou dizer a seguir, mas há muita merda na América. Já houve o slogan 'Free Iraq', eu proponho 'Free America'" (e corou, quando acabou).