Versão enigmática de Gus van Sant sobre massacre de Columbine causa perplexidade e polémica em Cannes
Depois do estardalhaço guerrilheiro de "Bowling for Columbine", de Michael Moore, em Cannes 2002, Columbine voltou a assombrar os ecrãs do festival. O filme do norte-americano Gus van Sant não é uma reconstituição da tragédia de 1999, quando dois estudantes de liceu assassinaram colegas e professores, antes de se suicidarem. Muito menos uma acusação gritada aos mecanismos, sociais e políticos, de uma nação, a América. É antes uma elegia, um exercício poético feito a partir de um dia na vida de um liceu americano. Nem por isso o filme será menos polémico do que o de Michael Moore (ainda nas salas em Portugal). Se calhar, por isso, pela ausência de explicações, é igualmente perturbante. O filme chama-se "Elephant", e é a primeira participação de Gus van Sant (realizador de filmes como "A caminho de Idaho" ou de "Gerry") na competição do festival, onde era um dos títulos mais aguardados e é agora um dos favoritos ao palmarés.O que é que tem a ver um "elefante" com um liceu americano? "Há uma parábola budista, sobre um grupo de cegos que examinam várias partes de um elefante; todos eles conseguem descrever a parte que lhes cabe, mas ninguém tem a percepção do todo", responde Gus Van Sant. Enigmático? O filme também o é. E por aqui se percebe já que "Elephant", feito para a cadeia televisiva americana por cabo HBO, se recusa a dar respostas ou a estabelecer nexos de causalidade, o que em Cannes já deu origem a reacções de admiração e de indignação. Há sinais que vão sendo revelados, com subtileza, alguns deles baseados no que se sabe das motivações dos assassinos suicidas de Columbine (por exemplo, o facto de serem alvo de humilhação por parte de colegas). Mas não interessa a Gus Van Sant explicitar, nem sequer dizer o que pensa sobre o assunto. Ontem, na conferência de imprensa, o realizador que tanto tem "flirtado" com o "mainstream" de Hollywood como se tem recriado como cineasta experimental, adiantou que tem a sua "própria interpretação" dos acontecimentos, mas não lhe interessa revelá-la; sabe-se apenas que é fã de "Bowling for Columbine", apesar de ser um filme nos antípodas do seu."Elephant" também não estabelece nexos narrativos de causa/efeito porque se sabe como tudo acabou: um massacre, brutal. A experiência, por isso, é outra, é sensorial: colar-se aos corpos dos alunos, observar os seus movimento; criar um tempo hipnótico e uma espécie de abstracção do que é ser jovem (como nas "Virgens Suicidas", de Sofia Coppola, mas ainda mais atmosférico). E foi também experimental a forma como "Elephant" foi feito: Gus Van Sant entrevistou uma série de alunos de liceu, à procura dos seus relatos e dos seus medos; os seleccionados entraram, com o seu próprio nome, no filme, improvizando a partir das suas histórias pessoais. O liceu (como nos documentários sobre instituições feitos por Frederick Wiseman, referência assumida em "Elephant") aparece como um corpo omnipresente mas misterioso. Intuimos uma organização com regras, mas nunca percebemos a complexidade e a totalidade das relações (como na parábola budista do elefante). É nesse espaço que os jovens circulam e a câmara observa. Que se ouve Beethoven. Que o movimento se desacelera e se olha para um pedaço de céu. Que um cão salta. Que uma partida de futebol acaba. Que dois alunos entram armados. E que uma arma é carregada. Um espaço em branco fica criado na mente do espectador. Para ele o preencher com as suas experiências. Depois, mesmo sabendo como vai acabar, o choque: tiros.Ainda sob o signo do instimismo atmosférico, chegou também "Distant". O turco Nuri Bilge Ceylan, 44 anos, não é um desconhecido: no Festival de Berlim de 2000, a sua segunda longa-metragem, "Clouds of May", fez soprar um vento de melancolia e foi um dos melhores filmes em concurso. Em Cannes 2003, Ceylan já mostrou aquele que ficará como outros dos filmes que marcaram esta competição.Uma paisagem urbana, Istambul coberta de neve, é o silencioso décor para a incomunicabilidade entre duas personagens, um fotógrafo e o seu primo, obrigados a partilhar o mesmo apartamento. Não é só isso que está em perda: a paisagem (como em alguns filmes de Antonioni, autor cuja obra é um fantasma que se insinua neste filme do jovem turco) aparece como um sinal de impotência, existencial, como se o mundo se tivesse apagado, e tudo tivesse sido já alienado, do emprego às relações afectivas, passando pelos ideais (numa sequência, o fotógrafo, admirador de Tarkovski, desiste de ver um dos filmes do realizador russo, "Stalker", e opta por um vídeo-porno). Em "Clouds of May", a personagem principal era um cineasta; em "Distant" é um fotógrafo. Ou seja, alguém cujo "métier", por princípio, leva à procura de uma relação com os outros, mas que acaba por ser um princípio de fechamento e autismo.Nuri Bilge Seylan é um engenheiro electrotécnico de formação e um ex-fotógrafo de publicidade ("a arte da mentira por excelência", disse). A sua vida mudou depois de ter visto "O Silêncio", de Bergman. Mas, apesar do culto de uma cinefilia exigente, só aos 30 anos teve a coragem de se lançar como cineasta. Agora, confirma-se como um dos nomes a ter em conta (como se diz) no cinema actual. É um artesão total dos seus filmes, que são uma espécie de autobiografia afectiva - até porque os seus actores e os cenários são muitas vezes membros da sua família e espaços da sua privacidade.