Experiência que simulou a sopa primordial da Terra foi publicada há 50 anos

Completam-se hoje 50 anos sobre a publicação da famosa experiência do químico norte-americano Stanley Miller, na revista "Science". Num artigo de apenas duas páginas, Miller descreve uma experiência científica que simula a atmosfera primitiva da Terra e como, a partir desse ambiente, surgiram os aminoácidos, um dos constituintes da vida. Esta simulação é hoje considerada como uma ruptura conceptual em relação ao que naquela época se pensava sobre a origem da vida.Em 1951, Stanley Miller, então um jovem investigador com pouco mais de 20 anos, ouvira uma palestra de Harold Urey, da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, sobre o aparecimento da vida no contexto de uma atmosfera primitiva redutora, ou seja, sem oxigénio. Os constituintes da vida poderiam ter aparecido numa atmosfera dessas. Urey, distinguido com o Prémio Nobel da Química em 1934, sugeria então que alguém deveria fazer a experiência.Muito antes de Urey, nos anos 20, o investigador soviético Aleksander Oparin já havia proposto um modelo da atmosfera redutora associado ao aparecimento de compostos orgânicos. De facto, o conceito de que a vida começou numa sopa primordial foi apresentado por Oparin. No entanto, como é que os compostos orgânicos dessa sopa primordial tinham sido sintetizados é que só foi demonstrado, pela primeira vez, pela experiência de Miller. Houve algumas experiências antes, mas nenhuma teve o sucesso da de Miller. Algum tempo depois da palestra de Urey, Miller, que era um estudante de doutoramento na Universidade de Chicago, foi dizer ao galardoado com o Nobel que gostaria de fazer essa experiência. Conseguiu vencer a resistência inicial de Urey, que dizia que provavelmente não chegaria a lado nenhum. Conceberam então um dispositivo de simulação da atmosfera e do oceano da Terra primitiva, que é descrito no artigo publicado a 15 de Maio de 1953 na "Science". Um balão de vidro, na parte de baixo, continha água, simulando o oceano, que Miller aqueceu para obrigar o vapor de água a circular por todo o aparelho. Outro balão de vidro no topo continha metano, amoníaco e hidrogénio, que nos anos 50 se pensava serem os gases da atmosfera primitiva do nosso planeta, e o vapor de água em circulação.No Outono de 1952, Miller começou os trabalhos. Submeteu os gases a descargas eléctricas, como se fossem os relâmpagos que fustigaram a Terra nos seus primórdios, levando os gases a interagirem. Os produtos dessas reacções químicas passavam depois por um condensador e dissolviam-se no oceano a fingir. Poucos dias depois, a água começou a ficar acastanhada. Quando a analisou, detectou uma grande produção de um aminoácido, a glicina, mas também de vários outros aminoácidos, além de compostos orgânicos. Como os aminoácidos são um dos constituintes da vida, na medida em que são os tijolos que compõem as proteínas, a experiência de Miller mostrava assim como teria sido a sopa química primordial surgiu a vida, que se pensa ter sido na água. Por outras palavras, criou as condições químicas da vida num tubo de ensaio. E, afinal, obteve resultados em poucas semanas, que demonstravam, pela primeira vez, como compostos com importância biológica podiam ser produzidos, e em grande quantidade, a partir de uma mistura de gases numa atmosfera reduzida. Miller mostrou os resultados a Urey e decidiram publicá-los na "Science". No início de Fevereiro de 1953, enviaram para a revista o artigo sobre a síntese de aminoácidos em condições que simulam a atmosfera primitiva da Terra. Mas a publicação não foi fácil. Um dos avaliadores do artigo não acreditou nos resultados e atrasou a publicação, contou Miller. Qual é, então, a importância desta experiência? "Houve uma ruptura conceptual em relação à origem da vida", diz ao PÚBLICO o investigador Francisco Carrapiço, do Departamento de Biologia Vegetal da Faculdade de Ciências de Lisboa. "Durante muito tempo não se admitia que fosse possível a formação de compostos orgânicos sem se estar na presença de organismos biológicos. A experiência de Miller comprovou que isso é possível.""O Miller é um pouco o Merlim da actualidade, no sentido em que criou compostos orgânicos, que estão na base da vida, sem a necessidade de haver organismos vivos para a sua síntese - o que até aí era considerado impossível. A prova disso é que o artigo levou bastante tempo para ser publicado e houve quem dissesse que tinha havido contaminações provenientes de micro-organismos. Não criou a vida, mas as moléculas na base da vida e sintetizou-as na ausência de organismos biológicos. Isso é a parte fabulosa."Jeffrey Bada, da Universidade da Califórnia, e António Lazcano, da Universidade Nacional Autónoma do México, revisitam a experiência de Miller num artigo que a "Science" publicou no dia 2 deste mês. "Foi a experiência de Miller que, quase de um dia para o outro, transformou o estudo da origem da vida num campo respeitável de investigação", escrevem. "Com a publicação desses resultados impressionantes, começou a era moderna do estudo da origem da vida", sublinham ainda."O impacte do artigo de Miller não se limitou aos círculos académicos. Os resultados captaram a atenção do público devido ao uso de descargas eléctricas para formar uma sopa pré-biótica." Mais adiante, estes investigadores contam também: "Três anos depois, quando os resultados foram corroborados por uma equipa independente, a metáfora da 'sopa pré-biótica' aparecia nas tiras de banda desenhada, nos 'cartoons', filmes e romances e ainda continua a ser assim."O ano de 1953 foi também o da publicação, a 25 de Abril, da estrutura, em forma de dupla hélice, da molécula de ADN, na revista "Nature", por James Watson e Francis Crick. Cedo começaram a surgir ligações entre estes dois trabalhos.Hoje até se sabe que a experiência de Miller, agora com 73 anos e professor jubilado da Universidade da Califórnia em San Diego, não estava correcta no que toca à composição da atmosfera primitiva. Pensa-se que era rica em azoto e também tinha monóxido e dióxido de carbono. "Eles não utilizaram o azoto", lembra Francisco Carrapiço.Mas a experiência provou o que tinha de provar. Além de tudo, também catapultou a astrobiologia, que estuda a origem da vida e das reacções químicas que permitiram o seu aparecimento na Terra e, quem sabe, noutros planetas. Será que não há vida, microscópica ou não, inteligente ou não, algures por aí?

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