Prémio Camões para Rubem Fonseca
Rubem Fonseca não é homem de ir a cerimônias. Não compareceu, por isso, ao encontro que ontem pela manhã reuniu na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, o júri e alguns poucos convidados - nem o presidente da casa compareceu - para o anúncio do maior prêmio literário de língua portuguesa. Já sabia, desde a véspera, que havia vencido, por unanimidade, os 100 mil euros e o reconhecimento como um dos mais importantes escritores do nosso idioma. Participara, falador e divertido, no jantar da noite anterior com os jurados, mas já ninguém contava com ele no anúncio oficial da manhã de ontem. Recluso e sem nunca dar entrevistas, o escritor nascido em Minas Gerais em 1925, mas adoptado pelo Rio de Janeiro aos oito anos de idade, garantiu aos amigos que vai a Lisboa receber o prémio e está empolgado com a viagem, que aproveitará para ir ver a região de onde saíram os seus avós transmontanos. No Brasil, Ruben é símbolo de romance policial e de contos rápidos e ferinos. Depois de quase quatro anos sem um novo romance, acaba de lançar "O Diário de um Fescenino", um jogo de espelhos onde um escritor escreve um diário enquanto não lhe ocorre o seu romance definitivo. Como em todos os seus livros, Rubem mais uma vez cria camadas de suspense, erotismo e bizarrices onde a estrela é sempre o narrador. Um autor contemporâneo, urbano e coloquial, que, para a surpresa dos brasileiros no júri, é também lido em África. "O nosso maior prazer foi ver que o nome de Rubem não foi sugerido por um brasileiro, mas pelos portugueses e logo abraçado pelos africanos", celebrou a editora, crítica literária e escritora brasileira Heloísa Buarque de Hollanda. Eduardo Prado Coelho, que se estreou no júri, lembrou que há umas duas décadas, quando "A Grande Arte" foi lançado em pequena edição em Portugal, logo aí se formou um clube de fanáticos pelo escritor. "Mais recentemente, com a chegada sistemática de novos nomes brasileiros a Portugal, houve também uma redescoberta de Rubem. Ele é em parte responsável por uma renovação, já que autores mais conhecidos como Jorge Amado acabaram por ficar mais regionalizados e menos atraentes para os jovens. A escrita de Rubem, urbana, directa, consegue uma enorme comunicação com os novos leitores", explicou.Também pesou na escolha o facto de Rubem ter chegado, via edições portuguesas, aos países africanos lusófonos. Também no júri, o moçambicano Lourenço do Rosário surpreendeu os brasileiros ao revelar o público crescente do escritor também no seu país. "Está bem entregue o prémio", sorriu o professor. "Fazia sentido que fosse um brasileiro, depois de dois prémios para portugueses, mas era importante que fosse alguém lido nos demais países. E há, mesmo na literatura portuguesa, um crescente interesse por uma escrita mais urbana, pulsante. Essa capacidade de mostrar pontos de vista alternativos do real, com personagens saídos das margens, de fora do centro de poder tradicional, faz a sua literatura relevante além dos limites da língua portuguesa", justificou Isabel Pires de Lima, o outro membro português do júri. De facto, a obra de Rubem Fonseca está traduzida em vários idiomas.O Prémio Camões vem coroar uma fase de renascimento de Fonseca também no plano pessoal. O escritor, que dorme poucas horas por noite e faz a sua ginástica matinal todos os dias, há alguns meses viu a morte bem de perto. Teve uma hemorragia interna, que lhe drenou metade do sangue, e foi o filho, o cineasta José Henrique Fonseca, quem chegou a tempo de o salvar. "Mas ele agora está óptimo, é impressionante", comemorou o outro jurado brasileiro e um dos melhores e mais próximos amigos de Fonseca, o jornalista e escritor Zuenir Ventura. "Ele tem a capacidade de conquistar cada vez mais leitores jovens, esse sentimento de redescoberta da sua obra me impressiona muito. Sobretudo quando descubro o mesmo sentimento nos outros países", diz o jornalista.Esta é mesmo uma fase de lua crescente para Rubem Fonseca. Além do Prémio Camões, está entre os finalistas na categoria de conto para o maior galardão do mercado editorial brasileiro: o Prémio Jabuti, que será entregue na Bienal Internacional do Livro, que começa amanhã no Rio de Janeiro. Zé Ruben, como lhe chamam os amigos, chegará também aos cinemas nos próximos meses - "A Grande Arte", dirigido por Walter Salles, e "Bufo & Spallanzani", realizado por Flavio Tambellini, estão entre as adaptações de livros seus -, mas desta vez como argumentista, adaptando o policial "O Matador", da sua discípula literária Patrícia Mello. O filme, que nas telas se chamará "O Homem do Ano", é interpretado por Murillo Benício entre outras estrelas brasileiras."O Diário de um Fescenino", o seu novo romance, está nas listas dos mais vendidos desde o lançamento, há cinco semanas. É uma reflexão sobre o autor e a sua obra que parece emoldurar a conquista de um prémio como o Camões. O narrador, um escritor que na falta de conseguir escrever o seu grande romance começa um diário sobre mulheres e andanças e acaba envolvido numa acusação de estupro, é também um entremeado de referências a outros autores e a questões como o alter-ego e a identidade. Rubem parece repetir a cada momento do romance que não pode ser responsabilizado pelas maldades, qualidades e mesquinharias dos seus narradores e do seu mundo de sexo, trapaças e, por vezes, escatologia. Este homem simples e especialmente inteligente por trás - ou será à frente? - desta horda de errantes fumadores de charuto e mulheres baratas é agora definitivamente consagrado como um dos grandes da língua portuguesa, através do mundo subterrâneo a que nos convida a entrar desde há décadas. Impiedoso, Rubem atira-nos com o mais cru do ser humano, e, em cada fracasso de um dos seus amantes, redime-nos. Deste crime de nos devolver uma literatura assim viva e quotidiana, Ruben Fonseca já foi absolvido por todos nós..