Crónica: O beduíno que foi levar um poema a Bush

Antes de deixar a América para vir tomar Mossul, o sargento Murray há de ter recebido treino para muitas missões, mas não para esta. Neste momento é portador de um longo poema, em manuscrito e cassete áudio, dirigido ao homem que é responsável pela sua presença aqui - George Bush Júnior. O referido poema leva nada menos que meia hora a recitar, como tivemos ocasião de ouvir. Foi composto pelo beduíno Atya Hussein Ali, da tribo Al-Shamri, uma das maiores do Iraque.Na manhã de anteontem, Atya arranjou um carro e fez os 120 quilómetros que separam a sua terra de Mossul. Veio leve, de túnica azul, e "kaffyeh" vermelho e branco por aí fora, trazendo consigo nada mais do que um envelope e uma cassete.Depois de muitas voltas por pontes e viadutos, lá foi dar ao Hotel Mossul, o cinco estrelas da cidade. Perguntara onde estavam os americanos, tinham-lhe dado aquela indicação. E era verdade. Por estes dias, o pesadote de cinco estrelas está todo por conta das tropas americanas. Não há civis à vista. Era a hora mais difícil, a do calor vertical. As grades do portão ferviam. O sargento Murray, do outro lado do portão, também não devia estar muito mais fresco, com uniforme, colete, capacete, cinto de munições e metralhadora - que sempre aquece as mãos.Atya aproximou-se, com o seu envelope já meio enrodilhado e a sua cassete sem caixa. É homem de pele muito escura e dentes muito brancos. Nem por isso alto, mas de barba rija.Tentou comunicar.Mas do treino que o sargento Murray há de ter tido também não fez parte aprender árabe. E o inglês do beduíno Atya, nem de arranhar.Os dois homens ficam-se, cada um do seu lado do portão.Até que Atya houve o nosso guia falar inglês. Chega-se a nós, pedindo mediação. O sargento Murray é posto a par. Anuncia que vai pedir instruções e retira-se para o interior do pátio.É neste ínterim que Atya nos conta a sua história."Sou só um pastor e a poesia é o meu passatempo."Estamos à beira de uns arbustos, a tentarmos manter-nos dentro de um pedacito de sombra."Isto é um presente para o senhor Bush. É um poema. Chama-se 'Bush salvou-nos da tirania de Saddam'."É o que diz o envelope, por fora - em árabe, claro está. Mas como o envelope está fechado e não temos nenhum gravador à mão Atya disponibiliza-se para recitar. (Lamentamos não poder respeitar a rima do original)"Bush, salvaste-nos da tirania de SaddamFizeste-nos viver em paz, segurança, prosperidade, finalmenteSalvaste as pessoas do Iraque e do islãoDe um criminoso que destruiu cada cidade neste paísSaddam governava pela morteEsperamos que se perca, se torne pobre, mendigoE que o que nos fez lhe seja feito"E por aí fora.O que não faria um poema destes pela cruzada neo-conservadora. Estamos em crer que Rumsfeld até seria capaz de o mandar imprimir e largar de pára-quedas. Milhares de papéis descendo dos céus do Médio Oriente com os versos do beduíno Atya, um bom homem libertado. Queremos saber mais coisas deles. Conta-nos que tem 30 anos, é casado, com quatro filhos. Que desertou do exército iraquiano na guerra do Golfo de 1991. Que fugiu para a Arábia Saudita e depois para o Qatar. Regressou clandestino."Agora é a liberdade, os americanos salvaram-nos, todos os shamri [a sua tribo] estão contentes. Queremos um governo democrático e aceitaremos os americanos aqui muito tempo. Eles respeitam-nos e dão-nos valor."É um homem bom, o beduíno Atya.Volta o sargento Murray com o veredicto do seu superior. Atya pode entregar-lhe o poema, depois de uma pequena revista. Quem sabe um destes dias Bush filho apareça ao bom povo da Florida ou do Nebraska a citar versos do beduíno Atya. Não oferecem dificuldades (pelo menos traduzidos para inglês).

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