Maio de 68, a herança impossível
"A polícia ocupa Nanterre! Quem se solidarizar connosco saia já para a rua, senão deixe-se ficar nas aulas". Quem falava assim era um estudante da Universidade de Nanterre irrompendo num anfiteatro da Sorbonne, onde decorria uma aula de demografia. Era o dia 3 de Maio de 1968 e eu encontrava-me nesse anfiteatro.Não pensei sequer um segundo: peguei nas minhas coisas e fui para a rua da qual já não saí durante o mês todo. Mais tarde, perguntei muitas vezes a mim própria porque motivo o fizera tão espontaneamente, porque motivo, recém-chegada a França, me identifiquei tão imediatamente e tão absolutamente com aquela "guerra".Hoje 35 anos depois e com uma visão mais crítica, torno a colocar a mesma questão: o que levou uma geração a entregar-se com uma tal intensidade afectiva a um movimento que não tinha uma única ideia clara, um único objectivo definido, a não ser "exigir o impossível"?! Nos anos que se seguiram fizeram-se inúmeras análises, tiraram-se variadissimas conclusões. Sobre as causas, os conteúdos, os efeitos...mas quase todas marcadas por uma grande subjectividade, pela dificuldade em separar a nostalgia, da reflexão.Esta dificuldade tem também outra razão: sobretudo nos anos imediatamente a seguir a Maio de 68, a reflexão foi conduzida essencialmente pelas organizações de extrema-esquerda, maoístas e marxistas-leninistas que se consideravam depositárias do movimento, ou pelo menos suas legítimas representantes, quando na realidade o movimento levou à rua uma massa de jovens estudantes universitários e dos liceus e até do operariado, muito mais jovens e menos politizados, que de forma alguma se reviam nos esquemas dos grupos neo-leninistas e para quem Maio de 68 foi sobretudo a experiência da transgressão ou "a libertação do desejo".O movimento de Maio foi vivido na época pelos seus participantes como uma ruptura radical com o "velho mundo" mas como referiu Jean-Pierre le Goff, a radicalidade das suas propostas políticas, nomeadamente o exercício de uma democracia directa sem instituições, nem mediações, tornou a sua herança impossível. Não que muitos dos seus temas, em particular os relacionados com uma cultura hedonista e libertária, não impregnem a sociedade e não apenas a sociedade francesa. Mas a sua não integração no vocabulário marxista-revolucionário, contribuiu para tornar essa herança, de certo modo, inconsciente.Maio de 68 não foi, todos sabemos, uma revolução. Foi um movimento de contestação radical da juventude da burguesia, anti-autoritário e de rejeição dos valores da sociedade de consumo, com um lado lúdico e festivo da utopia tornada, por momentos, realidade. Talvez muitos dos seus aspectos façam sorrir hoje, mas na realidade ele contribuiu mesmo que indirectamente para uma maior democratização da sociedade, através da exigência de uma maior autonomia individual, permitiu uma maior lucidez dos indivíduos no seu relacionamento consigo próprios e com os outros, chamou a atenção para a discriminação de determinados grupos sociais. Mas do ponto de vista político soldou-se por um insucesso total e mais do que isso: passou um atestado de óbito ao esquerdismo político.Este, no entanto, ocupado a adequar a realidade aos seus esquemas, não o entendeu. Digo-o com algum conhecimento de causa, porque na senda de Maio de 68, também eu partilhei durante alguns anos o mundo lunático e antidemocrático do esquerdismo político francês e português. Não entendeu na altura, como em minha opinião, continua a não entender o mundo que nos rodeia. Adaptando-se à evolução social e aos novos problemas, o esquema de pensamento continua, no entanto, a ser o mesmo. Só que cada vez mais privado de qualquer tipo de projecto político global. A esquerda radical tornou-se numa espécie de "má consciência" da sociedade, refugiando-se num militantismo de acusação. Existe efectivamente nas nossas sociedades um espaço para a denúncia e a resistência, mas a luta contra as injustiças e as desigualdades, não chega para esconder a ausência de um projecto ou de uma reflexão global. A extrema esquerda já não defende uma ordem social radicalmente diferente ao capitalismo que tanto odeia, porque sabe que o seu discurso revolucionário se é que ainda acredita nele, já não passa. Mas permanece a sensação de que embora não os trazendo para o debate público, ela se mantém agarrada aos antigos dogmas, à espera de melhores dias. Esta cristalização conservadora estará relacionada com a ausência de reflexão crítica sobre as bases mesmo desses dogmas. E também porque considera que fora de si não há ideias, só há interesses, interesses poderosos, maquiavélicos, comandados pelo omnipotente e omnipresente deus dinheiro, nas mãos do qual os povos não passam de meros joguetes. O mundo e as suas profundas transformações seriam assim resultado, não de um determinismo complexo, mas de uma vontade maldosa e perversa, de um plano demoníaco contra os povos indefesos. A este respeito não posso deixar de evocar um fenómeno, contado pelo editor francês François Gèze, que embora particular a uma época não deixa de ser revelador das profundas contradições da extrema esquerda. Nos anos que se seguiram a Maio de 68, o roubo organizado, e reivindicado como acção revolucionária, da livraria de François Maspero "La Joie de Lire", em Paris, símbolo e alimento do pensamento da extrema esquerda, acabou por levar a referida livraria à falência. Ou seja, em nome da luta revolucionária contra a mercantilização do pensamento, cortava-se assim uma das principais raízes desse mesmo pensamento.Hoje, no espaço antes ocupado pela "Joie de Lire" ergue-se um restaurante, onde passou a reinar sem vergonha o deus dinheiro...