Há uma primeira impressão, bastante forte, que nenhuma dessas interrogações dissipa: a sensação, perante "Tudo ou Nada", de que já vimos este filme, a sensação de que Leigh se repete, repisando temas e modelos que já abordou e trabalhou por (muito) mais do que uma vez - como se este filme fosse uma reacção a quem o censurou precisamente pelo "desvio" de "Topsy Turvy", o filme mais "diferente" que Leigh alguma vez fez. Essa impressão, insiste-se, é forte e não é anulada pelas perguntas que a seguir se podem pôr. É quando muito modulada, adensando o "mistério" que em última instância "Tudo ou Nada" alberga: o que é este filme, porquê este filme, se recusarmos à partida a hipótese de Mike Leigh estar apenas a cumprir programa em crise de inspiração.
Valha a verdade que também não parece isso. E de resto "Tudo ou Nada" é o filme mais "formalista" de Mike Leigh, indesmentivelmente rigoroso na sua respiração de planos longos e cenas "lentas", montagens paralelas e alternadas - há, deste ponto de vista, uma espécie de limpidez como que correspondente a um esforço de "depuração", que deixa supor que Leigh terá tentado ver-se livre de uma série de componentes normalmente associadas ao "género" (o chamado realismo britânico) que, voluntariamente ou não, o seu filme convoca e no qual se inscreve. "Tudo ou Nada" é um filme "limpo" mesmo quando é "sujo", resultado indubitável de uma estilização que se tem a si própria em conta - ou que pelo menos se parece ter mais em conta do que alguma vez aconteceu num filme do realizador.
auto-paródia. Um olhar pela crítica inglesa - que recebeu muito bem o filme - deixa perceber que, em parte, foram estas razões ou outras próximas delas que estiveram na base dessa boa recepção nalguns casos bastante entusiástica. O caso da "Sight and Sound", que na sua recensão ao filme enumera uma série de rimas e contra-rimas entre "Tudo ou Nada" e outros filmes de Mike Leigh (sobretudo "Life is Sweet", "High Hopes" e "Segredos e Mentiras", assim reforçando a ideia de haver neste filme uma dimensão auto-referencial nada dispicienda), chegando mesmo a defini-lo como "o 'Blue Velvet' de Mike Leigh, uma expedição aprofundanda em território previamente apenas examinado em vista aérea". Aí, convenhamos, a comparação parece exagerada - tanto mais não seja porque "Blue Velvet" quanto mais aprofundava mais afugentava e menos explicava, e porque "Tudo ou Nada" não parece guardar um "invisível" do mesmo calibre: é um filme onde se vê o que há para ver, não parece que convocar uma aura de "inexplicável" faça, a este propósito, muito sentido.
Mas o que é interessante notar é que, nessa recensão altamente elogiosa da "Sight and Sound", lá está de fugida a palavra "auto-paródia", posta como hipótese ou como mera sombra que a dado momento passou pelo espírito do autor do texto.
Também não parece que Leigh tenha, voluntariamente, decidido auto-parodiar-se em "Tudo ou Nada", por mais poderosa que fosse a caução "pós-moderna" que isso pudesse constituir. Ou será que decidiu mesmo? Será que os vislumbres de uma auto-paródia (quando não de uma auto-caricatura) estão lá plantados para que a gente dê mesmo por eles? É que "Tudo ou Nada" tem momentos suficientes, em tipo e em número, para que seja impossível afastar completamente a hipótese de o filme conter, em doses sibilinamente administradas, uma espécie de irrisão não só do "habitual" cinema de Mike Leigh mas sobretudo daquilo que ele partilha com os esteréotipos do realismo britânico: as personagens que trabalham num lar de terceira idade (em particular o homem de meia idade encantado pela tão feiazita colega mais nova), os concursos de "karaoke" algures num deprimente bar de South London, a vizinha alcoólica tornada meia pateta pela bebida, as adolescentes grávidas com os seus namorados "hooligans", o taxista (Timothy Spall, actor recorrente de Leigh, que por isso leva a que a sua personagem possa ser vista como o que aqui há de mais próximo com um "protagonista") em crise existencial e apática rimada pelas deambulações londrinas a que o seu métier obriga, os seus filhos gémeos gordos e feios... Tudo isto corresponde tão claramente e tão caricaturalmente a um retrato do "horror" da vida nos bairros suburbanos da Greater London que não se pode deixar de pensar que Leigh sabia muito bem (obviamente que sabia muito bem) o que estava a fazer.
A partir daí, abrem-se as portas para que se chame a "Tudo ou Nada" o que se quiser - até para que se diga que o filme devolve o realismo britânico em burlesco, e que uma coisa serve de antídoto para a outra. Toda a história da família de Spall, com o ataque de coração sofrido pelo filho bulímico (será por isso que a "Sight and Sound" se lembrou de "Blue Velvet"? O modo como Leigh filma essa cena não deixa de evocar o ataque cardíaco do pai de Kyle MacLachlan no filme de Lynch) parece corresponder a uma revisão muito irónica desses olhares sobre a célula familiar que pontuam o centro de tanto objecto oriundo do realismo britânico - não deixando de fora a "generation gap" nem a incomunicabilidade entre o casal, nem a "maladresse" na gestão e partilha dos afectos. Há mesmo uma dimensão psicológica, ou psicologizante, talvez mais reforçada do que o habitual (outra vez a "crise" da personagem de Spall, com ponto alto numa indescritível conversa com a passageira francesa negociante em arte).
Tudo isto - que, no fundo, é mera especulação - intriga o suficiente para que não se possa arrumar "Tudo ou Nada", pelo menos com facilidade, enquanto mera auto-repetição de Mike Leigh. Mas não impede que, perante tanta irrisão ou indício dela, nos perguntemos se quem ri mais não é o próprio Leigh.