Os dois Solaris

Podemos, então, começar por recordar que "Solaris", de Tarkovsky, foi encarado, à época, como a resposta da URSS a "2001: Odisseia no Espaço" de Kubrick. É verdade que nos finais da década de 60 e princípios da de 70 (período da guerra fria e da corrida ao espaço) ocorria uma desenfreada competição entre os EUA e a antiga URSS em todas áreas - política, científica, económica, militar e artística. Até é provável que Tarkovski tenha visto o filme de Kubrick antes de realizar "Solaris", quando aquele foi exibido no Festival de Cinema de Moscovo, em 1969, e convém referir que ambas as obras abordam a temática de viagens interespaciais que culminam com uma epifania de natureza filosófica e religiosa, através do encontro com uma transcendente forma de inteligência alienígena. Mas as semelhanças terminam por aqui.

A obra de Kubrick assume um carácter mais épico, descrevendo a evolução do homem no Universo, sendo também formalmente dominada por um tom hermético e clínico, enquanto o filme de Tarkovsky tem um tom mais intimista, ao centrar-se primordialmente na problemática da natureza e realidade da psicologia humana - o espaço sideral é visto não como uma entidade insondável, mas como extensão do planeta Terra (como sempre em Tarkovski a natureza está omnipresente).

as duas versões.

"Solaris" (em ambas as versões) começa por ser a história de um psicólogo astronauta, Chris Kelvin, que, ao ser enviado a uma estação espacial abandonada, na órbita do planeta Solaris, a fim de prestar auxílio ao que resta de uma tripulação ensandecida, descobre que o planeta tem o condão de materializar em forma humana as memórias dos visitantes da estação, incluindo a memória da sua falecida esposa, Rheya. Em Tarkovski, esta premissa é pretexto para o cineasta explorar os seus temas, como a importância da fé e a relatividade do humano face a uma abstracta entidade superior que tudo determina.

Embora não esteja ao nível das suas melhores obras, continua a ser o filme mais popular de Tarkovski e tem algumas das mais assombrosas sequências da sua filmografia (o inolvidável plano final, em que a câmara descreve, através de efeitos especiais, um trajecto picado, ascendendo desde o solo até às nuvens, ou da terra ao céu, para nos revelar o derradeiro destino de Chris Kelvin).

A versão de Soderbergh é mais uma reinvenção do que um "remake" do filme de Tarkovski. Aliás, o próprio Soderbergh referiu em entrevistas que lhe interessava menos o "Solaris" de Tarkovski do que o romance de Lem. Nessa reinvenção, o impenetrável misticismo poético de Tarkovski cede, através até de um processo de compressão narrativa (este "Solaris" dura 90 minutos, em contraponto com os 160 da versão de Tarkovski), perante o romance entre Chris Kelvin (Clooney) e a esposa, Rheya (McElhone), amor assombrado na órbita de um insondável planeta, coberto por um oceano de memórias e emoções de todos os que foram bafejados pelos seus ventos e a ele ficaram aprisionados.

A nível plástico, estamos perante um objecto que quer fazer uma síntese do cinema moderno de ficção científica. Quando questionaram Soderbergh sobre os filmes que lhe tinham inspirado, respondeu: "Vi todos os filmes de Tarkovski. Todos os de Kubrick, assim como os de Antonioni. Em seguida, reescrevi o guião vezes sem conta, que passou por muitos passos até, finalmente, chegar à versão definitiva."

E, de facto, nele figuram as tonalidades clínicas (o azul é predominante) de "2001...", a alienação "chic" de Antonioni. Estão também mais presentes as atmosferas "noir" de "Alphaville" de Godard (cineasta de eleição para Soberbergh) e de "Blade Runner" - nas sequências na Terra (sempre de noite, numa cidade húmida e viscosa) - do que o abstraccionismo telúrico que é fulcral em Tarkovski.

Mas continua a ser intrigante a forma como Stanislaw Lem encara as duas adaptações do seu romance: em sua opinião, nenhuma delas faz jus pleno à sua criação literária.

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