Foi então que nos bateu à porta um jovem tímido, trinta anos por fazer, sotaque alentejano, com uns "bonecos" para nos propor. Veio pela mão de editor gráfico de então, Aníbal Fernandes, que o conhecia do tempo do desaparecido "o diário", e mostrava uma enorme fé naquele professor de geografia que vivia em Serpa, andava sempre com um saco a tiracolo e assinava Luís Afonso. Trazia a proposta de um barman que, diariamente, por detrás do seu balcão, se propunha discutir a actualidade com os clientes. O "Bartoon". A Direcção Editorial da época, encabeçada por Vicente Jorge Silva, gostou e decidiu apostar naquele desconhecido. E aquele desconhecido, talvez temerariamente, ocupou o lugar do Sam e do "Guarda Ricardo". Em boa hora.
Desde os primeiros dias - desde o primeiro dia, o 25 de Abril de 1993 - que Luís Afonso e o "Bartoon" se tornaram tão indispensáveis como o jornal, uma referência diária que rapidamente se tornou tão marcante na nossa identidade como o "Calvin" da última página. Com uma enorme, imensa, diferença: o "Bartoon" era nosso, português, atento, actual, mordaz, incapaz de deixar passar um dia sem deixar cair uma farpa certeira sobre um tema de actualidade. 363 vezes por ano, tantas quantas o jornal sai para as bancas, sábados, domingos, férias, o "Bartoon" está sempre connosco e, o que é milagre diário, não conversa sobre temas etéreos ou intemporais. A conversa ao balcão, com o jornal na mão de um cliente ou a ser lido belo barman, outras vezes um transístor ligado, é sempre um acontecimento, uma frase, um momento do que se passou no dia anterior que é comentado com a acutilância de quem não perde uma pitada do que se passa em Portugal ou no Mundo. De quem, como o Luís Afonso, é um leitor compulsivo de jornais, tem sempre uma rádio ligada e não perde um telejornal. Lá longe, em Serpa, ou ainda mais longe, quando vai de férias com o seu computador na bagagem, ele é seguramente um dos homens mais informados do país. E dos mais atentos.
Ao longo dos anos, uma quase infinita galeria de personagens foi passando por aquele inimitável balcão, sentando-se num dos seus bancos ou encostando-se-lhe apenas enquanto soboreavam uma cerveja ou passavam os olhos pelo jornal. Do homem de Foz Côa a um taliban, do marine americano ao banqueiro do FMI, do "laranjinha" ao "boy", do arrumador de automóveis ao polícia de intervenção, do touro de Barrancos ao comerciante de armas, para além do inveterado bebedor de cerveja, do velho de óculos quadrados, da mulher dos fartos cabelos negros, do intelectual de lacinho, todos habitaram esse incontornável palco da actualidade que é o bar mais conhecido do país.
Talvez por isso quando, há pouco mais de dois anos, trouxemos o editorial para a vizinhança do "Bartoon", foi como que pedíssemos licença para ocupar aquele lugar nobre do PÚBLICO. Aquele lugar que já faz parte integrante da identidade do jornal.
Agora que todos os dias o editorial de um dos directores dialoga com o olhar de Luís Afonso, tantas vezes tratando o mesmo tema, ora coincidindo no ponto de vista, ora divergindo radicalmente, no espaço das letras alinhando-se argumentos, ao lado disparando-se frases curtas, setas certeiras, momentos de fino humor com o senso comum, e desconcertante, do português desconfiado, ora sonso, ora ingénuo, capaz de cair fulminante sobre o nosso ridículo colectivo sem nunca ter de levantar a voz.
Por isso, agora que podemos recordar, no livro que hoje acompanha o PÚBLICO, uma selecção do melhor destes dez anos de inseparável companhia, podemos também recordar, entre o sorriso e gargalhada franca, muitos dos episódios marcantes do que vivemos como país ou daquilo a que assistimos como espectadores do Mundo.
Obrigado, Luís Afonso.