P&R: Quem são os xiitas e os seus símbolos?
P - O que quer dizer xiita?R - A expressão vem do árabe "Shi'at 'Ali" ou "o partido de Ali", irmão adoptivo, primo e genro de Maomé, o profeta do islão. Depois da morte deste, em 632, uma parte da comunidade dos crentes insistia em que os sucessores do Mensageiro de Alá deveriam ser escolhidos entre os membros da sua família, e por isso apoiaram Ali bin Abu Talib, marido de Fátima, filha de Maomé. A outra parte da comunidade, fiel à "suna" ou tradição, designou Abu Bakr, o primeiro discípulo de Maomé, como seu herdeiro. Assim nasceu o grande cisma que dividiu os muçulmanos em sunitas e xiitas.P - Quando aparece o xiismo como movimento político-religioso?R - O movimento conhecido como como xiita duodecimane ou Ithna-Ashariyah terá aparecido no século IX, após o desaparecimento do décimo segundo imã (guia espiritual), Muhammad ibn al-Askari, em 874, e não imediatamente após a morte de Maomé. Al-Askari tornou-se imã aos 4 anos, quando o seu pai faleceu. Em 874, desapareceu misteriosamente de casa, em Samarra (actual Iraque) e nunca foi encontrado. Como não tinha irmãos a sua dinastia extinguiu-se. Os xiitas duodecimanes - maioritários no Irão e no Iraque - recusam-se, porém, a acreditar que Al-Askari tenha morrido e confiam que regressará como "Al-Mahdi" (O Escolhido), aquele que, segundo o Corão, voltará pouco depois do fim do mundo. Assim, antes de 874, os islamólogos referem-se aos primeiros partidários da família de Maomé apenas como "proto-xiitas" ou descontentes com os omíadas. P - Qual o papel desempenhado por Fátima, a filha de Maomé?R - Nascida pouco antes do início da revelação corânica, Fátima deu a Maomé os únicos descendentes masculinos que sobreviveram ao profeta. O culto de Fátima pelos xiitas é parecido com o dos cristãos em relação a Maria: ela é também "a pura" (algumas seitas chegam ao ponto de dizer que permaneceu virgem apesar das suas maternidades), a mãe de uma linha de "salvadores" (os imãs). Tendo recebido a revelação de que o seu último descendente, o décimo segundo imã, se chamaria Muhammad ou Maomé, Fátima foi chamada "mãe do seu pai" (Umm abihâ), tal como Maria é "a mãe do seu filho" ou "mãe de Jesus-Deus pai". Fátima é a personagem central do núcleo fundador da "Sagrada Família do Islão", que inclui, Maomé, o seu pai; Ali, o marido; e Hassan e Hussein, os filhos.Foi Maomé que deu a sua filha em casamento monogâmico ao seu irmão adoptivo e primo Ali. Foi também para ela, excepcionalmente, que o profeta levantou a interdição de rezar nos cemitérios, o que lhe dava um estatuto particular, e explica a importância dos túmulos ("mashhad") no culto xiita. Para os seus inimigos, Fátima deixa uma imagem de uma mulher maldosa e ambiciosa. Mas, para a tradição xiita, ela é a anfitriã que acolheu os estrangeiros (Maria, a concubina copta de Maomé, e Salman, o cristão persa convertido), e cujos descendentes serão sempre os defensores da igualdade entre crentes árabes e não árabes. É também aquela que enfrentou Abu Bakr, o primeiro califa escolhido pelos sunitas.P - Como é que Ali, o primeiro imã dos xiitas, se torna quarto califa?R - Ali ibn Abu Talib só consegue ser califa (sucessor de Maomé), em 656, depois de Abu Bakr, Omar e 'Uthman. Tão venerado é Ali pelos seus partidários que algumas seitas o consideram um ser superior a Maomé, uma espécie de incarnação divina (são os casos de os Fiéis da Verdade do Curdistão ou dos alevitas da Síria e Turquia, que o vêem como "a essência de Deus"). Para os sunitas, Ali não passa de uma eminente personalidade islâmica, e alguns historiadores retratam-no tão só como um homem piedoso. Maomé nunca o fez ascender a um posto de comando e, mesmo após a morte do profeta, Ali não desempenhou qualquer papel político ou militar, embora se distinguisse pela sua competência em matéria religiosa. Quando 'Uthman (um aristocrata de Meca, do clã de Ummayya) foi assassinado em 656 - no que é considerada a primeira guerra civil entre muçulmanos -, Ali ascendeu ao califado. Não foi eleito por toda a comunidade dos crentes mas apenas pelos seus partidários. Este não passavam de uma coligação efémera, com aspirações e interesses heterogéneos. A legitimidade de Ali foi desde logo contestada. Pela ambiciosa Aisha, filha de Abu Bakr e mulher predilecta de Maomé. E pelo vingativo Mu 'awiya bin Abu Sufyan, governador da Síria e fundador da dinastia dos omíadas (a que reinou em Damasco de 661 a 750, ano em que foi destronada pela dos abássidas, de Bagdad, artífices da "idade de ouro" do império muçulmano).P - Como é que Ali se torna mártir?R - No mesmo ano em que foi eleito, em 656, Ali derrota Aisha na Batalha do Camelo, próximo de Bassorá (actual Iraque), e depois irá enfrentar Mu 'awiya na Batalha de Siffin, em 657. Encontrando-se em dificuldades, Mu 'awiya sugere um processo de arbitragem, que o Corão prevê quando dois campos de crentes travam uma guerra. A arbitragem não resolveu o conflito mas ajudou a que Mu 'awiya se colocasse num plano de igualdade com o califa. Uma parte das tropas de Ali rejeita a arbitragem e retira-se - são os "kharijitas" (os que partem ou secessionistas, cujos descendentes, os ibaditas, governam actualmente o Sultanato de Omã). Os kharijitas não perdoaram a Ali ter submetido o califado (decisão divina) a um falível veredicto humano. Subsequentemente, Ali esmaga uma revolta kharijita em Nahrawan (658) enquanto Mu 'awiya é proclamado califa pelas suas tropas e conquista a maior parte das províncias orientais do império. Em 660, a base de Ali resume-se ao Iraque. Em Fevereiro de 661, o kharijita Ibn Muldjam vinga os mortos de Nahrawan, assassinando Ali à saída de uma mesquita, em Kufa, que se mantém até hoje como local de peregrinação no território iraquiano. O califado de Ali deixa a comunidade muçulmana de tal modo dividida que nunca mais se consegue reunificar. Consagra igualmente, na opinião de historiadores, o declínio da Arábia. O centro do Islão passa a ser - e durante um século - Damasco, a capital dos omíadas.P - Por que é Hassan é aclamado imã?R - Quando Mu 'awiya assume o poder, os dois filhos de Ali e Fátima, Hassan e Hussein a ele se submetem, apesar de serem incitados pelos xiitas à revolta. Hassan assina mesmo um pacto com os omíadas a abdicar do califado, embora os seus defensores garantam que também impôs concessões a Mu 'awiya. Com um rico dote, Hassan retira-se para Medina, onde vive com as suas numerosas mulheres (diz-se que 90, alem de mais centenas de concubinas - daí a alcunha de "repudiador"). Hassan morre em 670, envenenado por uma das esposas, incentivada pelos omíadas segundo uma tradição xiita. O pacto de Hassan com os omíadas é visto pelos sunitas como o fim das pretensões dos imãs e como um exemplo de não resistência à tirania. A morte de um Hassan desprovido de poder, depois da derrota militar e política de Ali, não pressagiava um futuro brilhante para os herdeiros de Fátima. No entanto, o fracasso de Hassan em breve se transformaria numa paradoxal vitória do seu irmão, Hussein, o "príncipe dos mártires".P - Quando é que começa a veneração de Hussein?R - Quando Mu 'awiya morre, em Maio de 680, o seu filho, Yazid, é rejeitado como califa por Hussein, que assistira, impotente, ao pacto que o seu irmão, Hassan, fizera com os inimigos. Em Kufa, onde Ali foi assassinado, a população manda mensageiros a Hussein, refugiado em Meca, acusando os omíadas de "desviarem os bens de Alá" em proveito dos poderosos e dos ricos. Este é um dado moral que há-de perdurar no xiismo: o califa deve ser, acima de tudo, um homem de Deus. Hussein hesita em agir, e Yazid aproveita para reprimir o início de uma insurreição em Kufa. Volta-se depois contra as tropas de Hussein que, entretanto, são mobilizadas. Consciente dos perigos que corre, Hussein não recua, e assim começa a segunda guerra civil muçulmana, um conflito menor nos seus efeitos políticos e militares imediatos, mas de grande significado histórico e religioso. Os cavaleiros do califa tentam evitar o confronto, mas o filho de Ali prossegue a sua marcha até defrontar o exército de Yazid, em Kerbala, a sudoeste de Bagdad, onde morre. P - Qual a importância de Kerbala?R - Em 10 de Outubro de 680, em Kerbala, mais do que uma batalha, ocorreu uma série de combates e escaramuças. Enfurecido com a resistência do adversário, Yazid ordena um massacre. Hussein é decapitado. A sua cabeça será levada para Kufa e depois para Damasco. O seu corpo, espezinhado por cavalos, é enterrado em Kerbala, onde se encontra hoje um mausoléu. A partir de Kerbala, os xiitas passam a ter um redentor que aceita antecipadamente o martírio, para purificar o Islão da destruição por líderes corruptos. E o aniversário da morte de Hussein - o feriado de "ashura" - é dia de luto em que os "partidários de Ali", como que impelidos por um sentimento de culpa, se autoflagelam ou mutilam com sabres. P - Que seitas xiitas apareceram depois de Hussein?R - Após a batalha de Kerbala, o xiismo divide-se em numerosas tendências, mas todas fiéis a duas questões centrais: o islão deve ser dirigido pelos melhores e mais misericordiosos; e é entre os próximos de Maomé (ou seja, entre os partidários de Ali) que os "melhores" serão encontrados. Das várias tendências do xiismo sobressaem duas correntes principais. A primeira é a dos ismailitas ou septimanes (só veneram sete imãs, e daqui nasceram outras subseitas, como os drusos, os alauitas, os nusairitas e os zaiditas, estes últimos os mais próximos dos sunitas). A segunda é a dos ortodoxos duodecimanes (maioritários, reconhecem doze). Os xiitas consideram que só os imãs conhecem o sentido oculto ou "esotérico" da mensagem divina tal como Maomé a revelou ao próprio Ali. Não aceitam que o profeta tenha comunicado a mensagem a outros, mediante a transmissão do Corão, a não ser no sentido "exotérico". Deste modo, enquanto o islão sunita se torna na doutrina do poder e da conquista, o islão xiita assume-se como doutrina da oposição e do martírio.Fontes: "Dictionnaire d L'Islam, Religion et Civilisation" (Ed. Albin Michel, Paris); "L'Islam Chi'ite", de Yann Richard (Ed. Fayard, Paris); "The World of Islam, Faith, People, Culture" (Ed. Thames and Hudson, Londres); "O Islão", de Dominique Sourdel (Ed. Europa-América, Lisboa); "Dicionário do Islão", de Margarida Santos Lopes (Editorial Notícias)