Iraque, xiitas e neoconservadores
1. Duas coisas têm impressionado os repórteres no Iraque: o súbito vazio de poder, que trouxe anarquia, e a emergência dos poderes tradicionais, a religião e as tribos. E acima de tudo a força da estrutura religiosa xiita. Lembre-se que os adeptos do mais importante grupo xiita no exílio, a Assembleia Suprema da Revolução Islâmica no Iraque (ASRI), do ayatollah Mohammad Baqer Hakim, boicotaram a reunião de 80 elementos da oposição em Ur, promovida pelos americanos. Por uma razão: não aceitam uma reorganização política do país promovida pela potência ocupante. O comportamento dos xiitas (que não são politica e teologicamente homogéneos) tem-se guiado por esse padrão. Servem-se da autoridade religiosa para impor a ordem, surgindo como uma das raras entidades dotadas de legitimidade. E marcam a distância em relação ao "ocupante". Sabem que a ocupação será longa e desde já designaram o terreno em que vão combater: o do nacionalismo. A contraprova será feita quando os americanos anunciarem as suas intenções em relação ao petróleo iraquiano.Há vazio de poder e anarquia. Mas são fenómenos diferentes. A anarquia advém do colapso das estruturas de Estado, designadamente a polícia. O vazio político decorre de uma ditadura de 30 anos que eliminou qualquer vestígio de oposição interna e passou um rolo compressor sobre as antigas formações políticas. Os partidos e frentes vindos do exílio não têm qualquer expressão e não são reconhecidos pela população. Como é tradição em situações análogas, a constituição e a consolidação de partidos exigirá tempo e a realização de eleições como prova real. Por isso, até lá, predominarão os "poderes de facto". É com eles que os americanos terão de dialogar numa primeira fase.Os EUA querem impor um novo regime político. Têm três formas de o fazer: arranjar simplesmente um governo pró-americano, à imagem do egípcio ou do jordano; uma democracia comunitária à libanesa (uma partilha de poder entre curdos, sunitas e xiitas) e a democracia tipo "um homem, um voto". O Kuwait e o Qatar também se ofereceram ao Iraque como modelo de compromisso entre Islão e democracia "mitigada". Mas não é manifestamente este modelo dos emirados que os teóricos neoconservadores americanos têm em mente, quando querem criar um efeito de dominó democrático no Médio Oriente. Da reunião de Ur, na passada terça-feira, saiu uma declaração em que se recusa o modelo comunitário e se aponta para uma democracia federal. No Iraque, os xiitas são mais de 60 por cento da população. Independentemente da sua heterogeneidade e do regime que os seus chefes queiram vir a impor, os xiitas são a favor do princípio "um homem, um voto". Um modelo comunitário agradaria aos curdos, e talvez aos sunitas, assegurando-lhes o domínio duma parte dos órgãos de soberania. Mas não terão força para o impor.Enquanto os americanos "limpam o terreno" para a seguir poderem montar uma administração provisória iraquiana, os xiitas mobilizam-se e ocupam o terreno para serem os principais interlocutores do "ocupante" e preparar eleições.2. Um artigo de Eric Davies, director do Centre for the Middle Eastern Studies, da Universidade de Rutgers, refuta a ideia de que a democracia não possa florescer no Iraque por falta de tradição ("El Mundo", 17 de Abril). Fundamentalmente, Davies sublinha as fortes e históricas raízes do laicismo no Iraque. Esta tradição pluralista e de separação entre religião e Estado tem mais de um século e poderá ressurgir rapidamente. Sob a ditadura, "houve uma sociedade civil empenhada em sobreviver" e nas regiões curdas houve mesmo a possibilidade de uma experiência democrática. Os cépticos estão equivocados: "A memória histórica pode constituir um importante elemento sobre o qual reconstituir a sociedade civil e estabelecer a democracia no Iraque."Nos antípodas de Davies, um especialista francês do Iraque, Pierre-Jean Luizard, realça "o assustador vazio político" que sucedeu à ditadura. Anota que a própria classe média em que os americanos tanto apostam "está reduzida ao nada pela implosão da sociedade". Prevê que a ocupação americana possa suscitar antes uma reacção nacionalista sob forma religiosa. "Os iraquianos estão partidos entre o alívio, perante a queda de um regime que tanto os fez sofrer, e a constatação amarga de que, apesar dos sacrifícios consentidos para se livrarem da ocupação britânica, um exército estrangeiro está de novo nas ruas de Bagdad." Quanto aos exilados que viajaram nas malas do exército americano, esses não têm qualquer futuro ("Nouvel Observateur", 17 de Abril).Num registo paralelo, Khaldun al-Naqueeb, da Universidade do Kuwait, adverte contra o risco de regresso do "Iraque religioso". A sociedade civil foi desarticulada. Desfeitos por Saddam, "os sindicatos e os partidos políticos desapareceram - paradoxalmente - em favor das organizações religiosas que começaram a exercer, ainda sob a ditadura, uma espécie de poder subterrâneo."3. Está em curso uma surda luta pelo poder na cidade santa da Najaf, centro espiritual do xiismo há mais mil anos, e onde já houve um assassínio. "A batalha de Najaf é tão teológica quanto política", escreve Stanley A.Weiss no "Herald Tribune". "A cidade alinhou durante muito tempo com o xiismo Akhbari, que defende que os religiosos devem aconselhar mas não governar". Este xiismo opõe-se ao princípio teocrático de Khomeini (vilayat-i faqui), que concede o domínio temporal ao poder religioso. Uma vitória de Hakim pode favorecer as concepções iranianas. Inversamente, a superioridade da corrente Akhbari poderá vir a desestabilizar o Irão. 4. O outro grande actor são os neoconservadores americanos, como Paul Wolfowitz, os teorizadores da guerra ao Iraque e da reconstrução democrática do Médio Oriente. Há distinções a fazer. Rumsfeld ou Dick Cheney são unilateralistas realistas, mais interessados no controlo do Iraque do que no tipo de regime a impor. Ao contrário, para os neoconservadores, a questão fulcral é a dos regimes políticos no Médio Oriente. São conservadores no plano interno, revolucionários no plano internacional: querem abolir o "statu quo" e impor pela força democracias liberais.Bem o compreende o filósofo alemão Jürgen Habermas, num artigo no "Frankürter Allgemeine Zeitung". Os EUA deixaram de ser "a potência garante do direito internacional". "A autoridade normativa dos Estados Unidos está em ruínas", depois de terem sido pioneiros durante meio século. "Uma guerra ilegal é um acto contrário ao direito internacional mesmo se conduz a um sucesso desejável em termos normativos."E observa: "Os neoconservadores de Washington não opõem à moral do direito internacional nem o realismo nem a paz, mas uma visão revolucionária."