"A sovietização" do ensino superior
O ministro Pedro Lynce manifestou publicamente a intenção de diminuir administrativamente o número de alunos a admitir pelas universidades das grandes urbes. Invoca a "solidariedade" destas instituições para com as do interior e a necessidade de proteger estas da agonia que as espera. A ideia é peregrina e não destoa da produção normativa, sem qualidade nem senso, que empresta marca ao sector. Recordemos, em traços largos, o problema:Sem visão estratégica, sem capacidade de planeamento, sem coragem para enfrentar os pequenos poderes que garantiam votos e fidelidades, os sucessivos governos das últimas duas décadas permitiram o crescimento desregrado de universidades e licenciaturas. Tudo nasceu como cogumelos. Sem docentes preparados, sem instalações, sem laboratórios, sem qualidade. Onde havia autarca a reivindicar, aparecia ministro a conceder. Com uma procura vasta, ditada pela sedução terceiro-mundista da doutorice, os espertos engordaram e os políticos pactuaram. Mas começa agora a tomar forma o que era fácil de prever: a diminuição da natalidade (que estudos credíveis prognosticavam já nos anos oitenta) chegou ao superior; a divisão do saber até à dimensão do ridículo gerou cursos que o mercado não absorve; e a procura do canudo a troco de trabalho ligeiro aumentou o fluxo dos candidatos às faculdades de papel e lápis e pródiga exigência, fazendo crescer exponencialmente os respectivos licenciados. É preciso fazer algo. Coisas certas, corajosas. Não o que o ministro propõe. Assim:1. Não é despiciendo recordar que, nos tempos do regabofe, o actual ministro foi chefe de gabinete de um antecessor, director-geral do ensino superior, primeiro, e secretário de Estado, depois, por duas vezes. Ninguém como ele permaneceu tanto tempo com responsabilidades decisórias no sector. Muito do que hoje condena foi por si criado, a sós ou em co-autoria. Sem a contrição pública, que ainda não fez, continuará moralmente fragilizado. E esta não é uma questão de somenos.2. Estou a imaginar que o clímax intelectual do ministro seria atingido se pudesse nomear um qualquer Tino de Ranas do PSD (sem desprimor para o próprio, cuja autenticidade e voluntarismo aprecio), para ir de porta em porta das grandes cidades marcar as orelhas dos candidatos ao ensino superior: com uma laranjinha os futuros alunos da Covilhã, com duas laranjinhas, os que seriam enviados para Vila Real de Trás-os-Montes. À boa maneira do centralismo soviético, de má memória.Um estudante que viva em Lisboa ou no Porto não vai pagar por um quarto na província o mesmo que paga para ir para uma universidade privada na sua cidade, se o ministro o impedir, administrativamente, de entrar numa pública. Se a ideia do ministro vencesse, não acrescentaria um só aluno às universidades do interior. Iria sim beneficiar, escandalosamente, as privadas e aviltar o elementar direito de escolha dos alunos. Se o ministro quer proteger as universidades e politécnicos do interior, tem muitas medidas inteligentes ao alcance, socialmente inquestionáveis e humanamente dignas: pague custos de interioridade, via financiamento público; institua condições aliciantes de fixação de alunos e docentes, criando residências universitárias gratuitas para os primeiros e reforçando o vencimento dos segundos, por exemplo.3. Por detrás da polémica iniciativa, está a grande questão da diminuição do financiamento do ensino superior, que o Governo elegeu como objectivo. É que o ministro tem envidado esforços, não só para que os cortes de vagas se operem nas grandes cidades, como, de modo geral, em todo o país. Quem dirige as instituições sabe do que falo. E cortar alunos significa diminuir financiamento, num modelo em que recebe mais quem mais alunos tiver. Faz, pois, sentido abordar, ainda que sumariamente, a questão do financiamento e as que com ele se relacionam.Todo o dinheiro que se gaste em ensino nunca é em excesso. Mas o país tem dificuldades e existem outras áreas, igualmente vitais, carenciadas de investimento. Já ocupamos uma posição de topo no concerto da Europa relativamente ao que, por cotejo percentual com indicadores vários, gastamos em educação. Mas evidenciamos o pior desempenho, sempre que se analisam custos-benefícios. O nosso problema, antes de gastar mais, é gastar bem. Neste quadro e nesta conjuntura, não é a redução de custos públicos que me afasta do ministro. É a inexistência de uma política, global e coerente, justa e ambiciosa, geradora de mudança, que os reduza, mantendo o crescimento e aumentando o desenvolvimento (conceitos bem diferentes).Ao invés de reduzir administrativamente vagas nos grandes centros urbanos, impõe-se o fim do "numerus clausus" em todo o país. Porque uma coisa é o Estado não financiar cursos que social e economicamente lhe não interessem, outra é o direito inalienável que cada cidadão tem de estudar o que quiser e onde quiser, desde que pague. Naturalmente que o aumento das propinas é incontornável, neste registo. É socialmente injusto que o Estado privilegie os poucos portugueses que frequentam a universidade, na proporção em que o faz (os estudantes não chegam a pagar um décimo do custo real, anual, do ensino), enquanto começa a cobrar imediatamente os impostos da maioria que fica pelo caminho, obrigada a trabalhar para sobreviver. Como é socialmente abominável financiar as refeições das cantinas universitárias, independentemente do estatuto financeiro dos comensais, enquanto os jovens assalariados pagam a última das batatas que lhes enchem as marmitas.