Homens sem futuro

O certo é que, visto o filme, não se encontra nenhuma razão para se achar que a Espanha tenha ficado pior representada pelo facto de ter sido "Às Segundas ao Sol" o filme escolhido. O que, por outro lado, também prova que convém mesmo ir estando atento aos ventos de Espanha, ganhando força a ideia de se tratar de uma cinematografia que conseguiu constituir uma interessantíssima "segunda linha", por detrás dos nomes consagrados dos "mestres" mais populares (como Almodóvar) ou mais secretos (como Victor Erice).

Passemos ao filme de Fernando Leon de Aranoa, cineasta de 35 anos já com alguma "rodagem", mormente um punhado de longas-metragens (uma delas uma experiência no documentário) e múltiplas colaborações em escrita de argumentos. Fica a informação só como pequena nota introdutória, porque não vimos nada desse trabalho anterior de León de Aranoa, e em Portugal poucos terão visto. De qualquer modo, "Às Segundas ao Sol" não exige conhecimentos prévios.

a derrota. O tema do filme é uma questão que, por exemplo através do filme de Laurent Cantet actualmente em exibição, "O Emprego do Tempo", parece estar a encontrar uma curiosa renovação: o desemprego. Dispensaremos aqui a formulação de hipóteses explicativas para essa renovação, ou para a renovação do interesse no tema. O que parece mais interessante é, sobretudo, a renovação das maneiras de falar sobre esse tema - e nesse aspecto quer "O Emprego do Tempo" quer "Às Segundas ao Sol", mesmo que eventualmente só a coincidência temporal permita associá-los, são duas originais perspectivas de abordagem, bastante distantes (no espírito e na forma) das tradições do cinema de "militância social" (como os franceses, em tempos, fizeram muito, e como os ingleses continuam a fazer).

No caso concreto, León de Aranoa toma como ponto de partida um despedimento colectivo ocorrido nos estaleiros de Gijón no princípio da década de 90 (se bem que transpondo a acção para Vigo). Não para contar o que se passou então, mas o que se passou depois. Este tempo é importante, porque evoca menos a "luta" do que a "derrota" - o tempo do filme é um "depois" que parece eterno (ou seja, que parece não ter tempo), acompanhando um grupo de personagens que preenchem os dias demabulando daqui para ali, remoendo a amargura, procurando a oportunidade de reencontrar um "emprego". Não há outra "história" em "Às Segundas ao Sol" para além desta ausência de história. Num certo sentido, as personagens são uma espécie de versão proletária dos "vitelloni" de Federico Fellini; a diferença fundamental é que os "inúteis" de Fellini precisavam do filme todo para (se) perceberem, enquanto aqui as personagens sabem à partida que a sua "inutilidade" foi decretada. Há um vazio imenso a que foram condenados, "Às Segundas ao Sol" é a vida nesse vazio, a vida no "outro lado".

Resignação é, claro, uma palavra-chave. Mas seria demasiado simples, o filme não é só uma história de resignação. Há uma espécie de violência contida, furibunda, particularmente evidente na personagem de Javier Bardem. De todo o grupo, é ele o "téorico", o mais falador, o mais dado a "activismos". Curiosamente, será talvez também o que mais facilmente se adapta, ou o que mais facilmente aceita - fica a dúvida se não será, afinal de contas, aquele a quem a lucidez e o cepticismo mais depressa fizeram desistir. Talvez, ao mesmo tempo, por ser o mais capaz de agir - como na história do candeeiro duas vezes partido, pequena vingança sobre a antiga entidade patronal, ou no episódio da coroa de flores roubada e "adaptada" às circunstâncias (onde se lia "Dos teus companheiros no Conselho de Administração" passa a ler-se apenas "Dos teus Companheiros"). Se a amargura das personagens é geralmente uma amargura muda, sem palavras, vivida interiormente (tanto assim que nalguns casos leva à completa implosão, como acontece com a tristíssima personagem chamada Amador), estes pequenos pormenores conferem-lhe uma dimensão mais exteriorizada - assim como se fosse a face visível, ou a tentar ser visível, de qualquer coisa que foi sacudida para um canto e para longe da vista, mas que no entanto ainda se move (o episódio do jogo de futebol, a que as personagens assistem clandestinamente, também é um bom sinal desta "resistência", ou se calhar melhor, desta "insistência").

Paralelamente a isto, talvez o que impressione mais no filme de León de Araona seja a luz que se lança sobre o mundo dos vencidos da vida - há uma espécie de calor nessa luz, quase mediterrânica (apesar de tudo se passar em Vigo), como se as personagens encarnassem ao mesmo qualquer coisa de profundamente vital. O título do filme, para lá da ironia (como são desempregados, podem ir apanhar sol às segundas-feiras), parece apontar para aí. Nada aproxima, em termos estilísticos ou formais, este filme do cinema do finlandês Aki Kaurismaki (cujo "Homem sem Passado" ainda deve estar fresco na memória dos espectadores, pelo menos dos que o viram); nada, a não ser, numa espécie de fim do universo, um tom que se exprime numa vontade de abraçar a "causa proletária" como causa perdida, e portanto como causa mais justa e mais admirável entre todas - ficar do lado dos derrotados, sem esperança de vitória porque nem sequer há propriamente esperança de combate. Mas há - e isso podia estar perfeitamente num filme de Kaurismaki - a possibilidade de passar as segundas-feiras ao sol.

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