E, no entanto, "Longe do Paraíso" coloca questões formais de diferente índole: funciona num registo misto entre o "remake", a paródia (no sentido sério do termo) e o "pastiche". Inscreve-se, em simultâneo, numa estratégia de homenagem a um só filme, "O Que o Céu Permite" (1954), e, por extensão, o melodrama de Sirk, numa abstracção do mundo representativo dos Fifties, e numa dimensão de cópia denunciada, que o torna sobretudo num olhar sobre o presente.
Enquanto "remake", Haynes conta a mesma "história" de Sirk: uma mulher da alta burguesia de uma pequena cidade da Nova Inglaterra sente uma forte atracção pelo jardineiro, homem mais novo e de classe inferior. Mas, enquanto no original Jane Wyman é viúva, com filhos adolescentes e universitários, e o objecto da paixão é o espadaúdo símbolo sexual dos 50’s, Rock Hudson, este falso "remake" opera uma alteração de monta: Moore é casada e o marido é homossexual, os filhos são pequenos e parecem recuperados de outras ficções "infantis" de Sirk (as comédias românticas e subversivas, de que "Weekend with Father", de 1951, é o referente mais evidente), e o jardineiro, se mantém a envergadura de Hudson, acrescenta-lhe uma característica fundamental: um negro num mundo de brancos, também com uma filha de anterior casamento, a propiciar conflitos raciais subterrâneos.
Enquanto paródia, Haynes compraz-se em piscadelas de olho ao espectador prevenido: a entrada na cidade faz-se por um plano de grua semelhante ao de "O Que o Céu Permite", até o nome da personagem responsável pela bisbilhotice, Mona, transita de um filme para o outro, como marca subtil (e "inútil") de uma dependência em filigrana. O empenhamento melodramático e sobretudo a belíssima sequência final, com a despedida toda em gestos subliminares do que não pode ser dito, revelam o sentido da intervenção no passado. Presentifica-se os 50’s como se um dos objectivos passasse por uma revisão de mentalidades, uma noção do que faltava dizer: em Sirk intervinha-se sobre problemas de classe e de diferença de idade entre os amantes (mulher mais velha e homem mais novo, motivo melodramático por excelência); Haynes acrescenta-lhe as questões sexuais e rácicas, depois de Stonewall e dos movimentos emancipatórios da minoria "gay" – para já não falar das revelações posteriores sobre a (homo) sexualidade de Rock Hudson -, sobretudo depois de toda a evolução dos Civil Rights, no que concerne aos direitos dos Negros, ou melhor, para corresponder à transformação de conceitos, dos afro-americanos.
E chegamos à questão do "pastiche", noção profundamentamente ligada ao distanciamento que os pós-modernismos detectam na criação artística e cultural: mais do que um olhar directo sobre uma época e um tipo de cinema, "Longe do Paraíso" opta por uma obliquidade interveniente, tornando as cores puras e sem sombras numa forma de estabelecer pontes com o nosso tempo, embora possam ser lidas como mimética aproximação aos tons outonais e às nebves fictícias do original.
a crónica de um tempo.Se pensarmos o objecto fílmico dentro desta perspectiva de reflexo e refracção de uma época, outra questão se perfila : que filme vemos, quando vemos "Longe do Paraíso"? Que espectadores somos? Tudo depende, queiramos ou não, do nosso conhecimento dos materiais referenciais. Não estamos a dizer que o espectador médio necessite de Sirk e de uma integração histórica para ler um objecto autónomo. O que defendemos é que co-existem dois graus diversificados de análise: a que isole, de forma sincrónica, um filme, e a que convoque uma forte coordenada diacrónica, lendo Haynes no contexto de uma progressão histórica das ideias e das formas. Quem veja "Longe do Paraíso" de forma isolada pode incorrer no empobrecimento do mundo conceptual que se constrói.
E aqui entram muitos elementos obrigatórios, que, de todo, se não circunscrevem a uma matriz simples: "Longe do Paraíso" é "sobre" a década de 50, sobre as suas contradições fundadoras, sobre o seu decorativismo gritante, sobre os seus mitos, tantas vezes perpetuados na modernidade que temos.
Se não vejamos: a personagem torturada do marido homossexual, composta com rigor absoluto por Dennis Quaid, deve muito a uma abstracção viual de duas das grandes estrelas dos 50’s, Marlon Brando e sobretudo o Montgomery Clift de depois do desastre, com tiques minimais e uma forma, herdada o Actor’s Studio, de criar uma figura a partir de uma reinvenção do conflito interior.
A sequência em que Moore vai resgatar o marido à esquadra não pode deixar de evocar a cena inicial de "Fúria de Viver" de Nicholas Ray, enquanto os planos "inclinados", de uma imagem obliquada e confusa invocam o estilo rebuscado de Elia em "A Leste do Paraíso". Ambos os filmes haviam servido de veículo para o mais mítico dos "rebeldes sem dos Fifties, James Dean, e Kazan fora encenador e realizador da adaptação cinematográfica de "O Eléctrico Chamado Desejo".
Ora a peça de Tennessee Williams (no anos 40) constituía a abertura para a ponta do iceberg, representando pela primeira vez de forma moderna a homossexualidade como motivo dramático. A referência era discreta e aparecia numa fala de Blanche Dubois, a "southern belle", que um dia abrira uma porta fechada e encontrara o marido nos braços de outro homem. E a cena de "Longe do Paraíso", em que Julianne Moore leva o jantar ao marido, assim descobrindo o seu segredo, funciona como "ilustração" dessa presença que nos anos 50 apenas timidamente se nomeava.
Mais importante ainda: Haynes vê os Fifties de forma retrospectiva, como a década da recuperação económica, do "baby boom", da proliferação gráfica da publicidade, das revistas de decoração e de moda, de um quotidiano estilizado, reproduzido em móveis e cores, cozinhas modernas e a chegada da alta-costura aos adereços e vestidos da protagonista. Daí a insistência no desfile de moda de Julianne Moore, herdeira de Jane Wyman, mas também de uma abstracção da influência de Dior, e outros, no "look" das saias rodadas e coloridas, nos estampados e nas "écharpes". Esta estranheza faz do "paraíso" que o filme constrói e desconstrói um filme em si.
Há uma intervenção política clara, na medida em que se intervém sobre o centro do conformismo americano, na grande década que forja o conservadorismo da era Eisenhower/ Nixon, depois prolongado no consulado Reagan/Bush e, no presente, no reaccionarismo patético do Bush, filho. Assim, a modernidade do olhar de Haynes passa pela capacidade de instrumentalizar a década da segurança, depois do pós-guerra, mas também da intervenção na Coreia, do MacCarthysmo e do terror atómico, nos primórdios da Guerra Fria. Há a segurança da casa moderna, com o conforto electrodoméstico, mas também os abrigos atómicos nos jardins (que o filme não mostra mas intui), o início da conquista do espaço, a queda exposta de um modo de viver artificial e baseado em convenções de fingimentos vários.
Se se está "longe dos paraísos" artificiais que o discurso dominante sobre os anos 50 veicula, está-se muito perto da possibilidade que a modernidade reclama de encenar "imitações de vida", arte e artifício. É do princípio do século XXI que Haynes se ocupa: Sirk e os anos 50 não passam de metáforas possíveis e detectoras de um deslumbramento compungido.