A aliança Luso-americana

Será uma observação óbvia, mas convém fazê-la com a mesma veemência com que João Botelho assinala o facto no genérico de "A Mulher Que Acreditava ser Presidente dos Estados Unidos da América", onde se pode ler, em vez do tradicional "um filme de", "uma comédia de João Botelho".

Talvez valha a pena insistir um bocadinho por este lado, pela questão do género e especificamente da comédia. Conhece-se a atracção do realizador, afirmada mais do que uma vez, pela ideia do "filme de género", no fundo uma das maiores heranças deixadas pela Hollywood clássica - e ainda há pouco tempo, numa entrevista televisiva, Botelho falou do seu sonho de realizar um musical (a talhe de foice, um sonho que talvez se tenha começado a cumprir em "A Mulher...", espécie de musical sem música).

De algum modo, a aposta no género (e em particular na comédia, género eminentemente popular) parece configurar, no filme, um desejo de reencontro com uma tradição, ou de conciliação entre tradições. Uma tradição que é, podemos chamar-lhe assim, "cinéfila" (aquele plano em que só se vêem os pés das várias personagens soa a homenagem "wilder-hitchcocko-lubitschiana" ou combinação parecida), e outra, bastante enraizada na cultura portuguesa, que vai, por hipótese, das farsas de Gil Vicente à (agora que se fala tanto da sua revitalização) chamada revista à portuguesa. Em tom de farsa elegante, de revista sofisticada, "A Mulher..." pode ser visto como uma elaboração sobre fórmulas profundamente imbrincadas na tradição humorística portuguesa - assim como se procurasse um salto em frente, uma proposta renovada de cinema popular, nascida da conjugação de modelos e espíritos tradicionais com a mais refinada comédia popular hollywoodiana.

Uma tentativa de diálogo luso-americano, portanto. Apesar do título, é difícil dizer que sejam só os Estados Unidos que interessam a João Botelho neste filme (também interessam, claro, mas já lá iremos). A sátira tem efeitos para dentro, como é óbvio, e nesse aspecto é um pouco o prolongamento de "Tráfico". Se nesse filme Botelho incidia especialmente sobre a vacuidade nova-rica da sociedade portuguesa pós-CEE e pós-cavaquista, aqui o âmbito será talvez menos localizado, mas não menos "português". De que outra forma justificar este retrato de uma mulher megalómana (Alexandra Lencastre) e do seu séquito de "yes women" se não como de uma farsa sobre um Portugal em nostalgia pós-imperial mas incapaz de se libertar (bom, e pelos vistos até com vontade de as recuperar) das suas manias de grandeza? Quando, no seu delírio, a personagem de Lencastre evoca todas as "coisas maravilhosas" que Deus ofereceu à América, não está a repetir, mais palavra menos palavra, alguns célebres tiques propagandísticos salazaristas sobre o "povo predestinado", sobre o país "escolhido por Deus" (ou por Nossa Senhora, nas versões contemporâneas)? E um dia, a mulher megalómana acorda e descobre que não tem nada do que sonhou (quem vir o filme percebe que isto é literal).

Podem-se encontrar outras pontes luso-americanas (na música, por exemplo, com a marcha de John Phillip de Souza que para uma geração inteira é apenas o "hino do MFA" e mais vívida recordação do 25 de Abril) em abono desta ideia. E será também a maior defesa possível - fazer o espectador aperceber-se do "espelho" e gelar-lhe o riso - de um filme que parece encontrar alguma dificuldade em lidar, na prática, com os seus pressupostos satíricos. Por outras palavras, e de forma mais abrupta, um filme que, pretendendo-se uma comédia, acaba por falhar na passagem das ideias aos actos (ou de forma mais abrupta ainda, um filme que raramente consegue provocar o riso). Isso é particularmente sensível em tudo o que, na farsa, diz mais directamente respeito à América: um bom exemplo será o "gag", talvez um pouco óbvio em demasia, do banquete constituído por hamburgers, batatas fritas e coca-cola. Há um lado porventura meramente anedótico na caricatura americana - e dizer isto não é pedir a João Botelho que tivesse antes feito um filme de guerrilha, ácido e bilioso, que fizesse chover sobre ele acusações de anti-americanismo. Apenas constatar que neste ponto específico há muitas comédias de origem americana (de ontem e de hoje, como se costuma dizer) que se conseguiram revelar (talvez paradoxalmente por terem menos a recear) muito mais corrosivas - falta-lhe acidez e mordacidade, faltam se calhar a Botelho as "lâminas Gillette" que se dizia que Billy Wilder engolia todas as manhãs.

É, em última análise, um problema de texto: "A Mulher...", pela sua estrutura visual arriscadamente volátil (mais do que de uma narrativa, é uma espécie de longa coreografia), deposita-se nas palavras e nos diálogos como alicerce de quase tudo. E muito simplesmente, essa âncora não encontra um fundo sólido para se alojar, o texto - para mais, veículo preferencial do humor do filme - poucas vezes se pode dizer que esteja à altura. Ficam, como principais valores a reter, a coerência do lugar deste filme na obra de João Botelho, e a importância da sua dimensão "experimental", com consequências que não se cingem apenas à obra do realizador.

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