Revisitar João Gaspar Simões
Para mal dos nossos pecados, e todos somos cúmplices nessa omissão, não existe, entre nós, uma obra que mereça intitular-se "História da Crítica em Portugal". Achegas, ocasionais e sintéticos panoramas, de certos aspectos da actividade crítica em Portugal não bastam para colmatar essa escandalosa ausência. Se existisse essa história, João Gaspar Simões ocuparia nela um paradoxal lugar: o do crítico mais representativo da crítica portuguesa dos últimos 70 anos e, ao mesmo tempo, o mais controverso.A crítica em Portugal nem nasceu com ele, nem mesmo com a "geração crítica" por excelência que foi (em todo o caso, para a minha geração) o grupo da "Presença". O século XIX, que a institucionalizou como utilidade de cariz historicista com Teófilo Braga, psicologista e sociologista com Moniz Barreto, não fez dela uma natural e coral companhia da criação, seu eco e sua interpelação. E, antes de tudo, objecto de paixão, como a "Presença" o fará. Paixão da leitura, preocupação e reflexão sobre a visão que move a obra, os valores que ela inculca ou serve, a emoção que só nela se sublima e, por fim, o desafio existencial que constitui como espelho de quem cria e emerge do tumulto como vida mais alta que a vida.A geração da "Presença" olhou para a obra, melhor dito, para a vivência literária, não apenas com a paixão pela literatura que o romantismo inventara, mas com outro olhar imposto por uma nova realidade escrita, ela mesma cada vez mais consciente de ser ou conter em si a "crítica" do mundo e pedindo, para ser, por seu turno, objecto de reflexão sem fim. Na verdade, José Régio, Gaspar Simões e Casais Monteiro tornaram-se "críticos" e inventaram a exigência crítica entre nós não por mera herança de um interesse genérico pela literatura em geral, mas como leitores de uma literatura que deixara de ser institucional ou decorativa e se tornara o lugar onde o homem se dá a ver como a si mesmo estranho, inacessível ou inesgotável. Essa gente é filha de Dostoievski, de Ibsen, de Tolstoi, de Tchekov e, mais contemporaneamente, de Proust e, mesmo, de Joyce. Para não falar de Freud. O que Claude Bernard tinha sido para a crítica naturalista do século XIX foram-no Freud, mas igualmente Bergson, para a geração da "Presença" e, mormente, para João Gaspar Simões. Se estiveram à altura desses desafios, se tinham a possibilidade de tirar dessas múltiplas e contraditórias tutelas aquilo que elas comportavam é uma outra história - que tem tanto a ver com eles como com o estado da nossa cultura.De todos os críticos "presencistas" foi João Gaspar Simões o mais representativo, não só por ter dedicado à crítica, exercida como uma espécie de sacerdócio social, grande parte da sua vida, mas por tê-lo feito em função de uma cultura fascinada por um certo número de evidências ou descobertas psicológicas, entre elas as de recorte freudiano, tomadas por ele, talvez, excessivamente à letra, como Fernando Pessoa lho lembrará. Contudo, simplificador ou mesmo simplista, o seu "freudismo" constituiu, na época, não só uma novidade como uma exigência superior em matéria de exigência literária e na das relações da obra com o sujeito que a cria, aquela que no seu tempo se falhava por não haver nela lugar algum para o papel do inconsciente que a estrutura. Do "freudismo" e da sua explicação profunda reteve João Gaspar Simões o papel da infância como fonte de onde a obra recebe o espírito que a suscita e torna singular. Mas isso ajudou-o menos a ver ou a sentir a opacidade incontornável de toda a obra que uma sua utópica singularidade. Talvez não tivesse compreendido ou aceitado que o famoso "complexo de Édipo" é menos achado do enigma que a sua manifestação. E que o mistério que contém não explica da mesma maneira Eça ou Fernando Pessoa. Apesar disso, ou por causa disso, dedicou a cada um desses criadores uma atenção que não tinham merecido a ninguém e em termos, até ele, inéditos. Não foi, porém, nas obras monumentais onde ele os biografou que o mais interessante Gaspar Simões se exprimiu - mas antes nos textos de juventude, contemporâneos da "Presença", como em "Temas" e "Mistério da Poesia", em que o futuro "mestre" da crítica dominante dos anos 30 e 40 ainda não enquistara no seu sistema.A todo o seu labor crítico, historicamente tão influente - até pelas controvérsias que gerou e as oposições criadoras que suscitou -, não seria injustiça acrescentar e mesmo sobrepor a obra romanesca do crítico, ainda bem mal lida e quase nada julgada. Em si, e no contexto da época, um romance como "Pântano" é um dos mais belos romances de amor do passado meio século. E se revisitássemos João Gaspar Simões?*ensaísta