Não há ditadores bons

"E quando se tem que escolher entre ter comida, saúde gratuita e poder depositar o voto, o que é que se escolhe?" Quem formulou assim a pergunta? Algum ministro dum governo ditatorial? Podia ter sido, mas não é esse o caso. O autor da pergunta é o cineasta Oliver Stone e a sua dúvida torna-se ainda mais inquietante quando se percebe que ela foi formulada a propósito de Cuba ou, mais precisamente, a propósito da personalidade de Fidel Castro, com quem Oliver Stone fez um filme-entrevista."Eu definiria Fidel numa palavra: 'moralidade'", afirma o realizador de "Platoon" e "JFK". "É natural que isto vá contra os clichés. Estaria disposto a fazer o mesmo com outra figura, Saddam Hussein, que para os americanos é o 'monstro'. Mas alguém sabe quem é o homem?"Ao contrário do que julga Oliver Stone, a sua opinião não vai nada contra os clichés. É bem antiga a ideia do "bom ditador". E tão antiga quanto ela é o inevitável retrato do homem que existe atrás do ditador. O segundo humaniza o primeiro e populariza-o em sectores de opinião que lhe são adversos. O mito do "bom ditador" e da "boa ditadura" assombra-nos há anos e tem a capacidade de seduzir as almas que se têm por mais críticas. No século XX, a direita e a extrema-direita foram responsáveis por regimes ditatoriais que se baseavam na defesa da superioridade moral dos seus líderes e dos seus seguidores. Simultaneamente aqueles que se lhes opunham, com particular ênfase para os comunistas, eram apresentados como moral e socialmente degenerados. Mas nem a derrota do nazismo e o agonizar do fascismo na Europa e na América Latina foram suficientes para erradicar o mito do "bom ditador". À esquerda ele manteve-se mesmo depois da queda do Muro de Berlim e renasce agora sob a bandeira do antiamericanismo, o que em vários países tem levado a uma bizarra, mas não inédita, aliança entre a extrema-direita e a esquerda nem sempre extrema, mas muitas vezes autista.Basta que o sátrapa em questão se diga antiglobalização e vítima do imperialismo norte-americano para que adquira o bendito estatuto de líder carismático. Se tiver o seu quê de chique, como gostar de fumar charutos ou usar roupa desenhada por criadores ocidentais, de preferência Armani, então consegue um lugar activo na galeria das personagens polémicas mas interessantíssimas a quem, em nome da lenda, tudo se perdoa e desculpa: Arafat está à frente da OLP há 34 anos e terá uma fortuna pessoal estimada em 1300 milhões de dólares ganha a partir dos monopólios de importação para os territórios ocupados, mas isso não tem qualquer importância para os admiradores dos "bons ditadores". Da Venezuela chegam notícias preocupantes de perseguições a líderes da oposição, despedimentos de milhares de grevistas, tentativas de acabar com a liberdade de imprensa e até de execuções e tortura de dissidentes por esquadrões paramilitares. Mas como Hugo Chávez declarou querer fazer do seu país um laboratório das ideias defendidas em Porto Alegre deve manter-se no estatuto de candidato a "bom ditador" por tempo indeterminado e continuar a receber no seu quarto de hotel, como aconteceu no último fórum de Porto Alegre, aqueles que o jornal "Globo" definiu como os "representantes do pensamento de oposição ao modelo neoliberal" e entre os quais se contavam nomes como o sociólogo português Boaventura Sousa Santos, os franceses Bouvé e Danielle Mitterrand e o escritor paquistanês Tariq Ali.A reacção dos apologistas dos "bons ditadores" tem agora largo campo de expansão no caso do Iraque. Ainda não se afirma claramente que Saddam seja um "bom ditador", mas já é certamente uma vítima dos acontecimentos. Porque subjacente ao conceito do "bom ditador" está a ideia de que é sempre possível dialogar com o "bom ditador". Aos ditadores maus, como Pinochet ou os militares indonésios presentes em Timor, não se deve sequer estender a mão para os cumprimentar, caso o protocolo e a diplomacia conduzam a tal encontro. "E quando se tem que escolher entre ter comida, saúde gratuita e poder depositar o voto, o que é que se escolhe?" O que Oliver Stone não sabe é que não se escolhe. Para quem vive numa ditadura esta pergunta não faz qualquer sentido. A ditadura é a ausência de escolha, o que em si mesmo é incompatível com a dignidade humana. Mostrar o homem que está por trás do ditador é um clássico da propaganda. E os ditadores sabem-no. Alguns deles conseguem até expor a sua vida privada, muito para lá do que é comum aos outros líderes, mantendo simultaneamente uma aura de mistério. O caso de Salazar, que Oliver Stone não conhecerá, mas que foi apresentado aos portugueses exactamente como "o bom ditador", é paradigmático dessa estratégia. António Ferro e Christine Garnier foram os nomes que mais apostaram nesse mostrar do homem que estava por trás do ditador. O livro onde, no ano de 1933, António Ferro coligiu um conjunto de entrevistas que fizera a Salazar chamava-se precisamente "Salazar, o Homem e a Obra". António Ferro mostrou o homem e divulgou a obra, ou seja, a ditadura.Os cineastas, os jornalistas, os escritores... são livres, nas democracias, de procurarem o homem que está atrás de cada ditador. Mas não devem esquecer que, pela frente, têm um ditador e que a banalização do mal é uma das características das ditaduras. Por isso, quando Fidel declara a Oliver Stone que "em 43 anos de revolução cubana não houve um único acto de tortura", não se sabe o que é mais chocante: se a mentira sobre a tortura, se aqueles 43 anos ditos assim, como se fosse normal um homem estar 43 anos no poder. Fidel está no poder há 43 anos! Exerce-o como qualquer outro dos muitos tiranos que a América Latina conheceu. Só que o exerce há mais tempo do que qualquer outro. O que também não aconteceu aos outros tiranos, muitos deles apoiados pelos EUA, por exemplo Pinochet, foi serem recebidos como libertadores pelo mundo fora. Mas isso acontece com Fidel e com esses mesmos homens e seus familiares que, há 43 ininterruptos anos, estão no poder em Cuba. Recordo que no último fórum de Porto Alegre, Cuba teve direito a um pavilhão onde se distribuía um "kit" intitulado "Propagandas Silenciosas - Massas, Televisão, Cinema". Lá dentro, entre material vário, estava um texto denominado "Um delicioso despotismo" onde se podia ler: "O império norte-americano, convertido em senhor dos símbolos, apresenta-se diante de nós com a sedutora aparência dos encantadores de sempre. (...) Não tenta obter a nossa submissão pela força, mas pelo encantamento, não mediante uma ordem, mas pelo nosso próprio desejo. Não pela ameaça de castigo, mas pela nossa própria sede inesgotável de prazer." Daqui à apologia do "bom ditador" não vai um passo. Já se está lá. E não falta nem a apologia da "boa ditadura", nem a menorização emocional daqueles que a rejeitam.

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