"Cativar o espectador e conduzi-lo a um lugar secreto..."
"Não ter nenhuma ideia é ser preguiçoso. Ter uma ideia e não a conseguir transmitir é incompetência". Para David Pountney - responsável pela encenação da ópera "Charodeika" ("A Feiticeira"), de Tchaikovski, que terá a sua estreia esta noite no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa -, a comunicação com o público é essencial, mas não se deve confundir com facilitismo. "A arte tem de conduzir a imaginação por caminhos surpreendentes. Se não for assim não é arte, apenas entretenimento", disse o encenador britânico ao PÚBLICO. Antigo director de produções da Scottish Opera e da English National Opera e actual director do Festival de Bregenz, Pountney já encenou várias óperas do século XX (de Janacék a Glass e Maxwell Davies) e tem um grande fascínio por peças pouco conhecidas como "A Feiticeira", de Tchaikovski. Vítima de uma estreia mal sucedida, esta ópera da maturidade do grande compositor russo nunca se conseguiu implantar no repertório, permanecendo, talvez injustamente, como uma obra esquecida. Numa co-produção com o Teatro Mariinski de São Petersburgo - o mesmo onde foi estreada em 1887 e onde será apresentada ainda este ano no Festival "Noites Brancas" -, "A Feiticeira" é certamente o título que desperta mais curiosidade em toda a temporada do São Carlos. O libreto de Ippolit Chepasinski dá-nos assim a conhecer a trágica história de Natássia (Kumá), uma jovem mulher cortejada por dois príncipes (pai e filho), e a desintegração moral de uma típica família aristocrática. A intriga termina com a morte de Kumá, envenenada pela mãe do jovem Príncipe (Iuri), e de Iuri, apunhalado pelo pai num acto que o conduz à loucura e à morte. DAVID POUNTNEY - Há sempre razões pelas quais as peças não têm sucesso, o que não quer dizer que sejam razões permanentes. No século XIX nunca se representava o "Così Fan Tutte", de Mozart, achava-se que tinha uma intriga tonta. Só depois de Richard Strauss o recuperar passou a fazer parte do repertório. Tchaikovski é um excelente compositor, autor de algumas óperas de sucesso. "A Feiticiera" foi escrita durante o seu período de maturidade, entre "Evgueni Oneguin" e "A Dama de Espadas", portanto só podemos esperar algo muito poderoso. Há alguns problemas na organização dramatúrgica, mas trabalhei bastante para os superar. Na "Feiticeira" podemos encontrar duas óperas. O 1.º acto é uma cena de carácter, com muita cor local, coros, bailado, grande actividade. Os outros três são encontros íntimos. Assemelham-se mais a uma ópera de Wagner, com muito pouca gente em palco e situações de conflito muito fortes. Este é um problema interessante...Mudei um pouco a natureza do 1.º acto, colocando-o no mesmo espaço dos restantes. A ópera é sobre a desintegração moral de uma família aristocrática e o estado psicológico dos seus membros, faz sentido que tudo se passe no mesmo espaço. A Princesa e a Feiticeira são na verdade dois lados da mesma pessoa. No seio desta família, como muitas vezes acontecia, toda a ideia de sensualidade, ou de sexualidade, era reprimida. Kumá representa o que era reprimido. Era apenas uma pessoa liberta e é isso que lhe traz o encanto. Não há magia, nunca tenta seduzir ninguém. Mas o facto de ser livre torna-se, para aquelas pessoas tão reprimidas, um factor de encantamento. Veja-se o exemplo da sua primeira ária. Não é nada que se pareça à "Habanera" da Carmen ou a uma versão feminina do D. Giovanni. Não há elementos de sedução ou de erotismo. É uma ária muito bonita e meditativa sobre a liberdade dos pássaros que voam pelos céus. Kumá representa essa liberdade, é alguém que não está constrangido pela sociedade. É por isso que a vejo como a sombra, ou como o oposto, da princesa. As suas qualidades também existem na esposa do Príncipe, ele apenas não sabe como ter acesso a elas. Por isso vai procurá-las fora de casa, uma atitude masculina típica.Foi por isso que transportou a acção do século XV para o século XIX?É óbvio que a peça é sobre pessoas do século XIX. A mentalidade da época está muito presente. Tem também a ver com as preocupações do próprio Tchaikovski, que foi igualmente uma pessoa muito reprimidada por ser homossexual. Acho que era algo que ele entendia muito bem e por isso coloca tanta emoção na música. Tem trabalhado com as principais companhias regionais britânicas. Este modelo parece funcionar muito bem no Reino Unido, mas é pouco comum noutros países. Que razões aponta para o seu êxito?Essas companhias estão normalmente associadas a grandes cidades. Por exemplo, a Opera North situa-se entre Leeds e Manchester, uma região com uma gigantesca densidade populacional. É difícil acontecer o mesmo com cidades mais pequenas, seja em Inglaterra, seja noutros países. A população que sustenta o Manchester United é a mesma que sustenta a companhia de ópera. Outra razão é o grande número de cantores de muito bom nível. No Reino Unido há poucas estrelas mundiais, mas quando descemos um degrau imediatamente abaixo encontramos o melhor, o que é óptimo para qualquer companhia regional. Isto tem a ver com a educação musical, que é muito boa. As pessoas são muito rápidas e inteligentes, podem fazer um trabalho fantástico. É um pouco o contrário de Itália. Temos as estrelas, mas a seguir há um grande abismo. O nível médio - os cantores que fazem papéis pequenos nos teatros italianos - deixam muito a desejar. O público da ópera contemporânea é muito diferente do da ópera tradicional?Depois do pós-guerra, a nova música começou a negligenciar o público e a julgar que não tinha a responsabilidade de comunicar com ele, o que é uma atitude muito arrogante. Mas nos últimos dez anos as coisas mudaram. Há muitos compositores a escrever música mais acessível e não só jogos intelectuais dedicados a pessoas que conhecem as regras. Portanto, podemos ficar esperançados...E a linguagem dos encenadores, também se tornou mais acessível nos últimos anos? Como caracterizaria a sua postura como encenador?O fulcro da questão é ter uma ideia e saber transmiti-la. Não ter nenhuma ideia é ser preguiçoso. Ter uma ideia e não a conseguir comunicar é incompetência. Apresentar uma ópera, ou outra "performance" artística, significa estimular a imaginação do público, captar a sua atenção e conduzi-la a um sítio desconhecido. Não tenho de lhe dizer o que ele já sabe, o que seria complacência. Se não for deste modo, não é arte, apenas entretenimento. Uma imaginação brilhante é um ingrediente muito importante numa sociedade civilizada. Caso contrário, não é legítimo receber subsídios do Estado. Temos de ser mais do que entretenimento: cativar o espectador e conduzi-lo a um lugar secreto."Charodeika" ("A Feiticeira"), de Tchaikovski Olga Sergeeva, Viktor Chernomortsev, Olga Savova, Vladimir Grichko, Aleksandr Morosov e outros (cantores), David Pountney (encenação), Zoltan Pésko (direcção), Orquestra Sinfónica Portuguesa, Coro do Teatro Nacional de São Carlos, Companhia de Dança Contemporânea CeDeCeLISBOA Teatro Nacional de São Carlos, hoje, às 20h (repete nos dias 27, 3 e 5 de Março, às 20h, e no dia 1, às 16h).