Anaïs Nin, a escritora que se queria tornar numa obra de arte
Quando Anaïs Nin mudava de casa, a primeira coisa que fazia era alugar um cofre no banco mais próximo, para lá guardar os inúmeros cadernos do seu diário íntimo. Nada tinha mais valor para ela do que estes milhares de páginas escritas à mão. Como se, sem este registo da sua vida, não tivesse nenhuma prova de ter existido, nem da realização do seu maior sonho: ser escritora. Mas será que foi escritora? A dúvida sobre a sua qualidade artística foi levantada durante toda a sua vida por uma crítica hostil à musa, mecenas e amante de Henry Miller. A autora americana, nascida em França numa família de origem cubana, é tão conhecida pelo seu diário como por uma obra erótica feminina pioneira, e cada vez mais apreciada. Mas, apesar de ter produzido ficção, Anaïs Nin nunca conseguiu entrar no mundo da arte, frisam os que estudaram a sua obra. Prisioneira do inventário dos seus dias, não inventou um mundo de ficção próprio.A sua obsessão com a procura do "eu" tornou as 250 mil páginas dedicadas a essa busca na sua principal referência bibliográfica. "O Diário de Anaïs Nin", cobrindo a sua vida de 1914 a 1974, é completado por livros de ficção, como "Uma Espia na Casa do Amor", "A Casa do Incesto" ou "Debaixo da Redoma", que não conseguem "descolar" da sua autobiografia."Tornar-me numa obra de arte importa-me mais do que criar uma obra de arte", escreveu, a dada altura, aquela que foi, antes de mais, uma mulher livre num mundo espartilhado por convenções morais. De resto, a severidade com que a obra de Anaïs Nin foi tratada deveu muito a um julgamento severo da sua vida aventureira e de uma liberdade sexual que não escondia. Nascida em Neuilly, perto de Paris, a 21 de Fevereiro de 1903, Angela Anaïs Juana Antolina Rosa Eldemira Nin y Culmel, teve uma mãe franco-dinamarquesa, Rosa Culmel, e um pai hispano-cubano, o pianista e compositor Joaquin Nin, ambos nascidos em Cuba. Aos 11 anos, o pai abandonou a família, deixando-os numa situação financeira precária. A mãe decide então levar os três filhos para Nova Iorque, onde a filha viverá até aos 20 anos. É no navio que os leva para a América que Anaïs Nin começou a escrever um diário íntimo. E as primeiras páginas são uma carta ao pai, desvendando o trauma da ruptura. Para a biógrafa americana Deirdre Bair - que consagrou três anos a uma pesquisa detalhada sobre Anaïs Nin, nos mesmos moldes que as suas biografias, aclamadas, de Samuel Beckett e de Simone de Beauvoir -, este episódio determinou a ausência de coerência pessoal que arrastou a autora por tantos sofás de psicanalistas, e que conduziu a uma relação incestuosa com o pai, mais tarde, por volta dos 30 anos. Bair foi a primeira pessoa a ter acesso à quase totalidade das páginas manuscritas do diário de Anaïs Nin. "Quando comecei a minha pesquisa, depressa tive o pressentimento de que iria encontrar o incesto na vida dela". O que explicaria a sua personalidade atormentada, assombrada por um frenesim sexual e por uma recusa obstinada em ser mãe.Aos 20 anos, Anaïs Nin casou com um banqueiro francês rico, Hugo Guiler, que não só não se ofuscou com as infidelidades da mulher como ainda financiou a obra de alguns dos seus amantes, como Henry Miller, Gore Vidal ou Otto Rank. Na "Anaïs Nin" de Deirdre Bair encontra-se outra revelação: ao contrário do que ficou popularizado no filme de Philip Kaufman, "Henry e June" - sobre a relação muito especial entre Anaïs, Henry Miller e a esposa deste, June -, a escritora não teria tido uma relação homossexual com June. "Anaïs Nin estava atraída por June Miller, mas nunca teve uma relação física com ela. A primeira experiência lésbica de Anaïs Nin ocorreu numa orgia em Nova Iorque nos anos 40, e ela não gostou dessa experiência, que não voltou a repetir", afirma, categórica, Deirdre Bair.A pesquisa do diário completo de Anaïs Nin deu à autora a fama de mentirosa. Afinal, nunca deixara de reescrever o seu diário, melhorando a sua imagem, e a publicação desta obra fora expurgada de certos episódios e de muitas páginas, "filtradas" pela autora. "As coisas não são vistas tal como são, são vistas tal como somos": a mais célebre citação de Anaïs Nin serve, de certa forma, de resumo à sua obra. Instalada em Nova Iorque no começo da II Guerra Mundial, a "maior das autoras menores", segundo a definição da sua biógrafa, viria a morrer nesta cidade em 1977.