Aguarelas de Turner na Gulbenkian

É um pintor sem paralelo entre os seus contemporâneos. As aguarelas de Turner, que atingiram uma inesperada abstracção na primeira metade do século XIX, estão a partir de hoje no museu Gulbenkian. A exposição, organizada pela Tate Britain e que foi um enorme sucesso em Madrid, tem entrada gratuita

Foto
A exposição tem entrada gratuita Carlos Lopes/PÚBLICO

Espalhados pelos 400 metros quadrados, estarão 64 aguarelas, seis gravuras e três óleos, sendo duas obras do museu da fundação - a aguarela "Plymouth com Arco-Íris" e o óleo "Quillebeuf, Foz do Sena".

A exposição, uma itinerância da Tate Britain comissariada pelo britânico Ian Warrell, surgiu do cruzamento de três pedidos. Dos museus de Baltimore (EUA) e Gulbenkian e da Fundação Juan March, em Madrid, chegaram à Tate ideias de uma exposição sobre Turner e o mar, as aguarelas e o mar, e as aguarelas e o último período do pintor.

"Muitas das aguarelas incompletas focam-se particularmente no mar. Esse parecia então um bom tema para ligar os três eventos. É um assunto que não tem tido recentemente muita atenção, por isso era uma coisa para a qual eu queria olhar mais detalhadamente", explicou ao PÚBLICO Ian Warrell, numa conversa telefónica a partir de Londres, pois o conservador de aguarelas da Tate não estará hoje em Lisboa para a inauguração.

Paradoxalmente, apesar do esquecimento em relação ao mar, este é um dos temas centrais da obra do pintor, ao qual Turner regressou constantemente - cerca de um terço das suas pinturas a óleo tem como tema o mar, diz no catálogo o comissário.

A cronologia sumária com que a exposição começa tem 23 de Abril de 1775 como primeira data: «Joseph Mallord William Turner nasce em Covent Garden, Londres, filho de William Turner, barbeiro e fabricante de perucas, e de Mary Turner.» 1790 é o ano em que expõe pela primeira vez uma obra na Royal Academy - uma aguarela -, mostrando o envolvimento precoce do pintor com esta técnica, como diz Manuela Fidalgo, conservadora para as artes gráficas, aguarelas e gravuras da Gulbenkian. «Antes de ser o grande pintor dos óleos já era um aguarelista reconhecido.»

As seis categorias da paisagem

O primeiro núcleo da exposição - que obedece a uma organização cronológica e está dividida em 17 secções - é dedicado aos anos da juventude, sendo a primeira obra exposta, que representa um barco na praia, a única co-autoria da exposição. É feita com Thomas Girtin, com quem Turner aprende e trabalha nos últimos anos do século XVIII.

A pintura que domina esta parte da exposição é um óleo que representa o estuário do Tamisa e é «muito influenciada», diz Ian Warrell, pelos mestres da pintura holandesa do século XVII: a linha do horizonte desenha-se baixa, permitindo a representação de uma grande superfície de céu, e nota-se uma grande atenção aos pormenores.

Logo a seguir vem a secção «Liber Studorium», baseada na ideia do «Livro da Verdade», do pintor francês Claude Lorrain, um projecto que ocupa Turner durante vários anos e onde o pintor define a existência de seis categorias para a pintura de paisagem: histórica, arquitectónica, de montanha, pastoral, E.P. (as iniciais, em inglês, podem corresponder a épica ou pastoral elevada) e marítima. O objectivo do livro era difundir, através da gravura, a obra de Turner junto de um público mais vasto.

As séries de gravuras

A exposição é aliás construída em redor das aguarelas que Turner fez para as várias séries de gravuras que editou ao longo da vida. A curiosidade, sublinha Manuela Fidalgo, «é podermos caminhar ao longo do processo criativo do pintor» ou, nas palavras do comissário, «é como se espreitássemos por cima do ombro do pintor» (ver entrevista).

De facto, é exactamente o momento do nascimento das formas em pintura que Ian Warrell gostava que as pessoas captassem com esta exposição. «Espero que as ajude a olhar para o mundo de forma a serem capazes de ver aquele momento em que os objectos são apreendidos. A forma como eles surgem na pintura. Gosto muito das últimas pinturas, oferecem essa revelação ao mundo.»

«Vistas Pitorescas da Costa Sul de Inglaterra» é o núcleo que se segue e é a primeira encomenda importante de uma série de gravuras. Para o projecto, faz 40 aguarelas. Os exemplos que estão expostos na Gulbenkian, com origem no legado que Turner deixou, são esboços iniciais ou intermédios, mas que mostram já a composição que vai aparecer na gravura. «Hastings Vista do Mar», da secção seguinte, com uma aguarela em fase intermédia e gravura correspondente é um bom momento para observar a evolução do processo criativo. «Em primeiro plano, o mar, com zonas de claro-escuro, surge através da utilização da aguada larga, enquanto uma zona de nuvens brancas é revelada pela cor do papel sobre o qual não se aplicou tinta. A posição do barco à vela é apenas sugerida, tratando-se do único elemento que parece ter sido alterado na obra final», descreve-se no catálogo.

Uma comparação semelhante é possível fazer, mais à frente, já na série de gravuras «Portos de Inglaterra», mas agora com uma aguarela acabada e a gravura correspondente, ambas intituladas «Whitby». «Dá quase vontade de encontrar as sete diferenças», comenta Manuela Fidalgo. «Plymouth com Arco-Íris», a aguarela da Gulbenkian incluída na exposição, pode agora ser vista lado a lado com um estudo preparatório.

Depois, já na série intitulada «Little Liber», podemos ver como a mesma folha de papel serve a Turner para desenvolver dois desenhos distintos ou, na série seguinte, descobrir como os papéis azuis foram utilizados pelo artista para experimentar cores mais vivas, juntado guache à aguarela, permitindo representar a espuma das ondas através do branco. Aliás, aguarela preparatória para o óleo da Gulbenkian presente na exposição, representando a foz do Sena, é feita sobre papel azul.

Cada vez mais abstracto

Já depois da secção dedicada à ilustração de livros - escritores famosos como Walter Scott ou Lord Byron encomendaram a Turner desenhos para as suas obras - vêm as «Vistas Pitorescas de Inglaterra e País de Gales», com onze aguarelas que ganham um aspecto cada vez mais abstracto. A liberdade criativa das paisagens marítimas de Turner do início da década de 40, escreve-se no catálogo sobre a secção «Céu e Mar», parece ter sido profetizada pela célebre frase que, logo em 1816, já mostrava um certo afastamento entre a crítica e o pintor: as suas paisagens são «quadros acerca de nada e com muita semelhança entre si». «Nestas aguarelas exploratórias tardias», acrescenta-se, «torna-se por demais evidente a tendência de Turner para a abstracção, onde a técnica e as qualidades semânticas ao nível da cor e da forma adquirem a mesma importância do tema da composição».

O último óleo da exposição, «Mar Encrespado com Naufrágio», encontrado no atelier do artista depois da sua morte, parece pertencer a uma fase mais secreta, mais pessoal e melancólica do pintor. Resta saber se Turner teria considerado as aguarelas expostas na Gulbenkian obras de arte e, assim, exemplos da sua expressão artística a mostrar ao grande público. «Acho que ele ficaria muito lisonjeado por as pessoas estarem hoje tão interessadas», diz Ian Warrell, mas é pouco provável, acrescenta, que Turner achasse estes estudos merecedores de serem expostos.

Sobre a hipótese de o trabalho do pintor inglês ter aberto caminho à pintura impressionista, Ian Warrell é mais céptico. «É uma teoria muito popular», diz ao PÚBLICO o comissário, «mas as pinturas que os impressionistas podiam ver de Turner não eram parecidas com estas que podemos ver na exposição. Muitas nunca tinham sido mostradas. É possível que Turner tenha tido alguma influência. Mas se ele tinha o mesmo objectivo em termos de pintura - o que é que o olho de facto vê em determinado momento? - , se ele falava sobre o mesmo tipo de coisas que os impressionistas... Mas eu penso que Turner está mais interessado na expressão».

Pelos padrões do seu tempo, até as pinturas mais acabadas de Turner parecem inacabadas. Na época, críticos mais duros falavam da sua semelhança a «ovos com espinafres». Nicolas Serota, o director da Tate Britain, começa assim o catálogo, a propósito das questões que a obra do Turner coloca: «A natureza extraordinária das suas pinturas tardias reside na circunstância algo curiosa de não se registarem paralelos quer nos trabalhos dos pintores que o antecederam quer na obra dos artistas seus contemporâneos.»

Sugerir correcção
Comentar