Torne-se perito

José Craveirinha (1922-2003) Uma figura tutelar da literatura moçambicana

O poeta moçambicano José Craveirinha, prémio Camões em 1991, morreu ontem na çfrica do Sul, aos 80 anos. Presidente da Associação de Escritores Moçambicanos desde a sua fundação até 1987, traduzido em diversas línguas europeias, era uma espécie de poeta nacional, a ponto de o governo de Joaquim Chissano ter declarado 2002 como "o ano do poeta José Craveirinha". Filho de um algarvio, natural de Aljezur, e de uma ronga - perdeu a mãe aos seis anos e o pai aos doze -, José Craveirinha nasceu no bairro de Mafala, na então Lourenço Marques, no dia 28 de Maio de 1922, uma data irónica para quem viria a ser um feroz opositor do Estado Novo salazarista. Terá sido do pai, versejador e leitor de poesia, que herdou o gosto pelas letras. Aos oito anos, Craveirinha, que mais tarde assumirá como um dos seus defeitos "gostar dos portugueses", já recitava Camões. Estudou na escola "Primeiro de Janeiro", de inspiração maçónica, e, segundo foi assegurado ao PòBLICO, foi iniciado, em 1997, na Grande Loja Regular de Portugal, tendo pertencido, no final da vida, à loja maçónica Andersen. Na sua juventude, o futuro poeta praticou atletismo - um dos seus filhos, Stélio, é atleta e treinador - e jogou futebol, na posição de avançado. Em meados dos anos 40, foi mesmo convidado a ingressar no Benfica, em substituição de Espírito Santo, outro jogador moçambicano, então em fim de carreira. No entanto, embora fosse adepto do clube de Lisboa, Craveirinha recusou o convite e manteve-se no Desportivo de Lourenço Marques. É também nos anos 40 que se torna jornalista, primeiro em "O Brado" e, depois, em diversos outros títulos, com destaque para "A Tribuna", em cuja redacção colaborou, no início da década de 60, com o ensaísta Eugénio Lisboa e os poetas Rui Knopfli e Luís Bernardo Honwana. Este último veio a ser seu companheiro de cela, quando Craveirinha, militante de uma célula clandestina da Frelimo, foi detido pela PIDE, que o manteve na prisão até 1969, acusado de actividades subversivas. Entre os seus advogados, contou-se Almeida Santos. O poeta estava ainda preso quando, em 1966, saiu em Itália, numa edição bilingue, o seu segundo livro: "Cantico a un Dio de Catrame", dois anos após a sua estreia com "Chigubo". Nas vésperas da independência, em 1974, publica, em Lourenço Marques, "Karingana ua Karingana" (expressão ronga traduzível por "Era uma vez"), onde aparece um dos seus mais célebres poemas, "Ao Meu Belo Pai Ex-Emigrante", que aqui transcrevemos. Até ao presente, editou ainda "Cela 1" (1980), cujos poemas evocam os tempos de cárcere, "Maria", dedicado à sua mulher, Maria de Lurdes Nicolau, filha de pai grego e de mãe ronga, que faleceu em 1979, "Babalaze das Hienas" (1997) e "Hamina e Outros Contos (1997). "Maria" constitui um caso particular na bibliografia de Craveirinha, já que se trata de um livro que o poeta foi escrevendo ao longo de duas décadas. Os 48 poemas da primeira edição, saída em 1988, aumentaram para nada menos do que duzentos na segunda edição, publicada em 1998 pela Caminho. "Um dos grandes livros de poesia lusófona", defendeu Fernando J. B. Martinho. E Fernando Assis Pacheco, que já só conheceu a primeira versão, afirmou que "este pequeno, pungente, maduro livro (...) evita o elegíaco patético e deixa ditas, de preferência, coisas de ternura e de cumplicidade doméstica". Presente nas principais antologias de poesia moçambicana, desde as editadas pela Casa dos Estudantes do Império, em 1951 e 1962, até à selectiva "50 Poetas Africanos", que Manuel Ferreira organizou em 1989, Craveirinha está traduzido, entre outros idiomas, em francês, inglês, italiano, alemão e russo. Já em 1960, ainda sem nenhum livro publicado, recebeu o prémio Alexandre Dáskalos, a que se seguiram, entre outros, os prémios Cidade de Lourenço Marques e Reinaldo Ferreira, o Prémio de Ensaio Cidade da Beira, o Prémio Nacional de Poesia, em Itália, e, em 1991, o prestigiado Prémio Camões, atribuído por um júri presidido por David Mourão-Ferreira. Após a independência, Craveirinha, amigo de Samora Machel desde o período das lutas de libertação, ocupou diversos cargos públicos. Foi vice-administrador da Imprensa Nacional e era ainda vice-presidente do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa. Apesar de ter sido condecorado por Joaquim Chissano, cujo governo consagrou 2002 como "o ano do poeta José Craverinha", as suas relações com as actuais autoridades de Moçambique não eram isentas de atrito. Em Fevereiro de 2002, poucos meses antes da homenagem nacional que assinalou o seu 80º aniversário, queixou-se, numa entrevista, de estar a ser vítima de "marginalização e ostracização", lamentando-se de que o governo não lhe atribuísse uma casa num dos bairros de elite de Maputo e avançando com a possibilidade de se radicar em Portugal. Uma reivindicação que não chegou a ser atendida. Craveirinha residia ainda no bairro de Mafala - já lhe chamaram o "soba de Mafala" -, que, mesmo nos tempos da colonização, era uma zona peculiar, onde se ouvia samba e jazz (muito presente nos seus versos) e onde os cristãos conviviam harmoniosamente com uma numerosa comunidade de macuas muçulmanos. Nome fundador de uma poesia que assume frontalmente a sua oposição ao colonialismo, Craveirinha está indiscutivelmente próximo do neo-realismo português, ainda que a sua obra integre traços um pouco surrealizantes, ao jeito, por exemplo, de um José Gomes Ferreira. Que não se sentia particularmente identificado com as novas gerações de poetas do seu país, demonstra-o uma entrevista que concedeu à TSF, em 2001, na qual afirmava que "há poetas a mais em Moçambique, mas poesia há muito pouca".

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