Efeméride: Estalinegrado, o princípio do fim
ès primeiras horas de 31 de Janeiro de 1943, faz hoje precisamente 60 anos, Hitler fez circular uma proclamação que enaltecia a "histórica contribuição" do Sexto Exército nas ruínas de Estalinegrado para a glória da Alemanha nazi e promovia o seu comandante, Friedrich Paulus, ao posto de marechal. A mensagem era óbvia: perante o cerco dos exércitos russos, os 91 mil soldados alemães que sobreviveram à fome, ao frio extremo, à doença e às balas soviéticas, teriam de lutar até ao último homem. Paulus não cedeu ao pedido e ao final da tarde entregou-se às ordens do general Chuikov. Os últimos focos de resistência durariam mais dois dias, mas a 31 de Janeiro a sorte da campanha alemã na Rússia e o próprio futuro do Reich ficaram definitivamente traçados na devastação de Estalinegrado.O que aconteceu entre Agosto de 1942 e Janeiro de 1943 entre os muros da velha e próspera Tsaritsin, uma cidade modelo nas margens do Volga que glorificou o culto da personalidade de Estaline, não cabe exclusivamente nos capítulos da história militar. Por esse lado, a destruição de um exército de 330 mil soldados de elite da Wehrmacht significou o fim da ofensiva alemã no Leste e o início do contra-ataque russo que só pararia em Maio de 1945 no Reichtag. Sobra depois a inumanidade de dois ditadores, Hitler e Estaline, o sofrimento de milhares de homens famintos e doentes sob temperaturas que ultrapassaram os 35 graus negativos e uma poderosa imagem da resistência russa que os PC's da Europa Ocidental usaram nos anos seguintes para apregoar a superioridade moral do comunismo.A história de Estalinegrado começa em Junho de 1941, quando Hitler rasgou unilateralmente o Pacto Molotov-Ribbentrop e avançou pelas estepes da Bielorrússia à procura do "Lebensraum", o espaço vital da ideologia nazi. Em Dezembro, a Wehrmacht estava às portas de Moscovo e Hitler acreditou que o fim da União Soviética estava para breve. Mas, como acontecera a Napoleão, a tenacidade das tropas russas e o vigor do Inverno suspenderam a ofensiva e adiaram o desfecho da Operação Barba Ruiva. Na Primavera de 1942, os alemães voltam à carga, direccionando as suas divisões para os preciosos poços petrolíferos do Cáucaso.Durante a Primavera e o Verão, a marcha alemã revelou-se imparável numa frente de 2000 quilómetros. Inicialmente, o objectivo era atingir Baku, sem que Estalinegrado fosse uma prioridade estratégica. Mas, depois de arrasar Kharkov, Voronezhm Tangarog e Rostov, os exércitos alemães foram surpreendidos por uma retirada estratégica das tropas russas para a margem sul do Volga, junto a Estalinegrado. Em Agosto, o cenário estava traçado: Estaline elegeu a cidade com 600 mil habitantes como o último reduto da sobrevivência da "mãe Rússia", enquanto Hitler vislumbrou na conquista da cidade com o nome do seu adversário um troféu irrecusável.Depois dos violentos bombardeamentos de 23 e 24 de Agosto, que causaram mais de 30 mil mortos entre a população, as tropas alemãs entraram na cidade. Em Setembro, julgava-se que a resistência claudicaria antes do Inverno. Mas a previsão estava errada. Estaline ordenou que os combates fossem feitos cara a cara, ruína a ruína, rua a rua, sem olhar a perdas. "Vamos barricar todas as ruas. Vamos transformar cada bairro, cada quarteirão, cada edifício numa fortaleza inexpugnável". Os soldados que abandonassem a linha da frente tinham à retaguarda brigadas da NKVD que se organizaram em pelotões de fuzilamento. "Na cidade incendiada", escreveu o comandante Chuikov, "não suportávamos os cobardes e não tínhamos lugar para eles".Durante meses, dezenas de milhares de homens envolveram-se no desespero de combates infrutíferos -a estação central mudou de mãos 15 vezes em apenas cinco dias. Para os alemães, o pior estava para vir. Em 19 de Novembro, os soviéticos lançam a Operação Uranus e, entre a camada de um nevoeiro "frio e espesso como o leite", mais de 250 mil alemães deram conta que ficaram cercados. A prudência e a sabedoria militar dos altos-oficiais alemães recomendaram um contra-ataque a sul, seguido de uma retirada estratégica. Hitler negou e prometeu o abastecimento aéreo da cidade. O destino do maior corpo do exército alemão ficou traçado.Quando o frio apertou, em Dezembro, e os aviões alemães sucumbiram às avarias e ao gelo, os soldados começaram a abater os cavalos e a exercitar a imaginação para resistir à fome. 3500 prisioneiros russos foram abandonados à sua sorte e o canibalismo tornou-se rotina - sobreviveram apenas 20. Para conseguir água sem correr o risco de ser alvejado pelos "snipers" - Zaitev tornou-se um herói ao abater 149 inimigos -, os alemães obrigavam crianças a acorrer às fontes disponíveis. Quando os russos descobriram o estratagema, começaram a abatê-las. Os arquivos do KGB revelam-nos outros testemunhos impressionantes: um soldado comunicou ao seu superior que os ratos lhe haviam comido dois dedos dos pés; os feridos, sem assistência, "uivavam" e eram levados à inconsciência pelas agressões dos seus camaradas. Sobreviveriam a esta hecatombe apenas comparável ao sofrimento do cerco de Leninegrado ou aos horrores das trincheiras de Verdun ou do Somme, na Primeira Grande Guerra, 91 mil soldados alemães. E entre os escombros, 10 mil civis resistiriam a esta "guerra de ratos", entre os quais aproximadamente mil crianças, "inchadas de fome, encolhidas nos cantos, com medo de falar e de olhar para as pessoas", como relatou um oficial russo. Os prisioneiros que encararam a rendição com alívio sofreriam nos meses seguintes a privação das marchas forçadas, da fome e da brutalidade dos campos. Mais de metade morreria antes do final de 1943. Em 1955, depois de uma visita de Helmut Schmidt a Moscovo, regressariam os últimos mil à Alemanha, entre os quais Paulus. Eram as derradeiras testemunhas de um dos mais brutais e desumanos acontecimentos do século XX.