Pedro, Jean-Marie e Danièle
"Onde Jaz o Teu Sorriso?" é um fulgurante olhar sobre o trabalho e o cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Pedro Costa fechou-se no quarto com o casal de cineastas. E se este for também um filme sobre o amor?
Um dia, perguntaram a Pedro Costa se aceitaria fazer um filme sobre Jean-Marie Straub e Daniéle Huillet. "Pareceu-me a coisa mais absurda e, ao mesmo tempo, mais evidente. Só faltava telefonarem-me a perguntar se quero fazer um filme-homenagem ao António Reis..." Porque, explica, são eles que "estão no princípio" do seu cinema. "Onde Jaz o Teu Sorriso?" ("Où Gît Votre Sourire Enfoui?", no original), documentário sobre o casal de cineastas franceses, é, então, o filme de uma filiação, não no sentido da citação cinéfila, mas de reconhecimento de uma atitude perante o cinema. "A bóia de socorro, para mim, foi sempre os Straub. Se eu precisava de alguma sensualidade no cinema de vez em quando, ou se preciso ainda, sei que são eles, não é o Godard."Costa chegou a eles por "encomenda pura". O canal franco-alemão ARTE propôs-lhe rodar um filme sobre Straub e Huillet, no âmbito de uma lendária série sobre cineastas, "Cinéma de notre temps", criada por André S. Labarthe e Janine Bazin nos anos 60, que "estava a dar os seus últimos suspiros". "Onde Jaz o Teu Sorriso?" é a versão alongada do filme que, entretanto, já foi exibido pelo ARTE, sem constrangimentos de formato. Este é que é, portanto, o filme - o outro, diz Costa, nem consegue olhar para ele. Entra-se nele através das imagens iniciais de "Sicília!" (1999), com as vozes de Straub e Huillet em "off" - só mais tarde se irá distinguir, na penumbra, o perfil de cada um. "Quer o meu lugar?", pergunta ela. "Nem pensar", responde ele. Entre eles, o cinema nasce de um pequeno teatro de desacordos, algures nesse "fotograma de diferença" que, segundo Danièle Huillet, os separa. "Attachez votre ceinture". Aperte o cinto. Porque vai assistir a algo singular. "Onde Jaz o Teu Sorriso?" acompanha a montagem de uma terceira versão de "Sicília!". Este é, portanto, um filme sobre esse trabalho longo, doloroso, decisivo, de combate frente a "uma matéria que resiste", como dirá Straub. "Quando o Jean-Marie me disse que iam para uma escola no Norte de França montar uma terceira versão do 'Sicília!", pensei que, se calhar, era isso que eu queria filmar, a montagem", lembra Pedro Costa. "Ele disse logo: 'A montagem não se filma, não consegues'. Respondi-lhe: 'Mas posso tentar.' Ele ainda insistiu: 'Mas olha que aquilo é trabalho, como é que vais filmar?' Tentei explicar-lhe que queria filmar o cinema pelo trabalho longo, de forma a que na duração do meu próprio filme estivesse a duração do que é a montagem. E, aí, ele disse: 'Mas, atenção, porque não descobrirás segredo artístico nenhum, isso não existe.'" Até porque o que Straub e Huillet fazem não é segredo, mesmo que seja um caso à parte: há quatro décadas que andam a filmar o vento nas árvores e o fogo das montanhas, perscrutando na matéria a essência do cinema. Por isso, lhes chamam materialistas. Nada mais certo, nada mais errado. O território por excelência da dupla é o inaprisionável, aquilo que procuram na duração de um gesto ou de uma expressão, uma zona intermediária no tal "fotograma de diferença", o "entre-deux". O filme de Pedro Costa confirma essa obsessão: na velocidade pára-arranca das imagens de "Sicília!", Danièle Huillet julga ver um sorriso nos olhos de um actor. Será que ele existe mesmo? Será que o vemos? "O realismo dos Straubs é tão forte que os faz ver coisas que não estão lá. Uma borboleta, um sorriso, normalmente são coisas boas e bonitas.", explica Pedro Costa. "E quando começam a existir de tal maneira para eles, começam a existir para mim também. Essa foi a grande surpresa: percebi que eles acreditam em coisas que não estão lá e isso deu-me muita confiança. Porque eu vivia num dilema grande: como é que sendo tão profundamente realista, de vez em quando tenho estas dúvidas metafísicas e místicas?"relâmpago. Sendo um filme sobre o processo da montagem (até no sentido pedagógico), "Onde Jaz o Teu Sorriso?" é também um fulgurante filme sobre o cinema. Que, a partir da dupla de cineastas, transborda para além deles. Citando de memória diálogos de filmes, e desafiando a câmara num "trivial pursuit" cinéfilo - "Qual é o filme?" -, Jean-Marie Straub vai fazendo as suas reflexões teóricas sobre cinema. Na exígua e escura sala de montagem, de onde o filme raramente sai, ele é irrequieto como uma criança, num constante vaivém entre o corredor, ela permanece sentada frente à moviola, concentrada e disciplinada. Este é também um olhar sobre a relação de um casal, a um tempo terna e violenta. Um belíssimo filme sobre o amor, portanto. "Produzir qualquer coisa com a capacidade do outro. É o amor, é a definição do amor para Brecht", adianta Pedro Costa. "O filme fala um bocado disso: como é que se conhecem, como é que se amam as pessoas. Quem não conheça os Straub ou não saiba que são um casal, o que já aconteceu, leva um tempo a perceber que eles estão juntos há tantos anos, que são marido e mulher, que não podem passar um sem o outro, se um morrer o outro morre. A certa altura, naqueles vaivéns entre eles, há uma espécie de relâmpago e percebe-se que eles são inseparáveis e que aprendem um com o outro, apesar de tudo, mesmo nas tonterias. Que ela gosta do que ele faz, do 'show-off', que precisa disso. E, apesar de recusar tudo o que que ele diz, toda a teoria, é evidente que o admira muito. Ele faz o romance e ela faz o suspiro, ela concentra tudo, é o suspiro concentrado dele."Ela: "Cale-se, Straub!" Ele: "Tenho uma coisa para lhe dizer, mas vou ficar à espera da sua permissão, senão digo na mesma." Costa filma-os como um casal do burlesco, libertando "gags" em cadeia. "Eles têm um lado burlesco, mas acho que estão mais próximos do cinema clássico americano, Spencer Tracy-Katharine Hepburn, Bogart-Bacall... Parece que eles são feitos para aquilo: quando o Jean-Marie pára, ela começa, para completar com uma coisa que ainda é mais engraçada ou para subir a parada. É muito, muito próximo do Lubitsch."danièle, como vanda. Pedro Costa rodou "Onde Jaz o Teu Sorriso?" quando o seu anterior filme, "No Quarto da Vanda", estava em montagem. "Estava a ser uma coisa mutíssimo difícil e toda a gente, eu, a Patrícia [Saramago, montadora] e o Dominique [Auvray, montador], íamos para casa de rastos, em silêncio, com o rabo entre as pernas. Portanto, de repente, pensei que talvez pudesse desanuviar um bocado." Acabou por passar qualquer coisa de um filme para o outro: a câmara - digital, a mesma de "No Quarto da Vanda" - está diante de Straub e Huillet, como antes estivera diante de Vanda Duarte, com a mesma proximidade silenciosa, com o mesmo respeito, com a mesma ternura. Costa prefere falar de "correspondências muito, muito secretas". Mas não é isso, afinal, que o seu cinema, e o de Straub-Huillet, andam à procura, do sorriso escondido, subterrâneo, "enfoui", como se lê no título original? "São coincidências: é um quarto, é uma sala, são pequenos gestos, uma pequena insistência em tornar grandioso o quarto. É um bocado como a Vanda: ao princípio, certezas absolutas, no fim do confronto, seja entre os dois, seja entre a Vanda e os outros, aquilo tudo vacila. Como na cena em que a Danièle diz que o actor tem um sorriso nos olhos. No fim, durante toda a discussão, de frente para trás, é a própria Danièle que diz que não há nada nos olhos, não há ali sorriso nenhum, há talvez qualquer coisa..."No quarto dos Straub, então, mas sobretudo no quarto de Danièle. A sala de montagem é o território dela - Jean-Marie está sempre no limiar da porta, está muitas vezes do outro lado. Depois de Vanda Duarte, Costa encerrou-se no quarto com outra mulher. "De facto, foi ela que me deixou estar. E foi muito o Jean-Marie, calculo, que convenceu a Danièle. Ela foi muito mais silenciosa e recebeu-me na sala dela impondo algumas condições: que a gente não a chateasse muito, que não estivéssemos muito próximos, nas costas dela, a luz era impossível senão ela não via as coisas, o monitor..."Danièle Huillet há-de deixar, por fim, a sala. Ela e Straub estão à porta da sala de projecção, aguardando a saída dos espectadores do seu filme, com o "impulso lírico" da música de Beethoven. "Pode dar a impressão de alguma melancolia, mas não sinto isso. É muito parecido com o fim de 'No Quarto da Vanda', em que se vê um pilar de uma casa que ficou lá. E fica lá tão tenazmente que já ninguém se lembra de o abater, porque é impossível. Nem sei qual dos dois finais é mais exaltante para mim."Grandioso filme este, grandiosos cineastas: quem quiser construir a casa toda, só tem de saber olhar. E assim, "um suspiro torna-se um romance". Jean-Marie Straub dixit.