Lanterna mágica
Diz-se que o nome "lanterna mágica" apareceu, pela primeira vez, em 1668, quando o matemático jesuíta Francesco Eschinardi descreveu a "laterna, quam dicunt magicam". Uma máquina simples (...) que permite projectar, numa superfície lisa, imagens ampliadas de vidros pintados com cores transparentes1 - Quem é que teve a ideia de ir buscar as lanternas mágicas para a Sala dos Cupidos?Algumas salas da moradia novecentista, que agora foi restaurada como sede da Cinemateca, são pintadas a fresco. A Fundação Ricardo Espírito Santo, que os restaurou (magnificamente), identificou um desses frescos como a musa Polímnia, símbolo da harmonia. Três elementos decorativos (uma lira, um ramo de loureiro e o papiro) reforçam essa interpretação da pintura, datada de 1907 e assinada por Pedro Guedes. Gostei do nome Polímnia, gostei da musa. Em madrugadas mais róseas, imaginei-a rodeada de lanternas, que transformavam a canora deidade em vitral vacilante e momentâneo.Só que, às vezes, presumo demais dos deuses, dos mitos ou dos acasos. Quando, numa noite mais baça, reacendi a luz para a contemplar (contemplar Polímnia) descobri que as memórias e os espaços me tinham ludibriado. Polímnia presidia a uma outra sala, não chamada à nossa festa. Na sala das lanternas não havia Polímnia nenhuma. A decoração limitava-se a Cupidos esvoaçantes.Nessa altura, ainda era incerto que as lanternas mágicas fossem postas a funcionar nos dias inaugurais. Mas, com escondida tristeza, pensei, de mim para mim, que, com tantos arcos e frechas, era difícil, para não dizer impossível, reconstruir a "pequena floresta triangular que aveludava de verde sombra a encosta da colina" e que sempre fora o maior mistério da evocação proustiana do crepúsculo de Combray, quando Golo, "plein d'un affreux dessein", avançava "en tressautant", para o castelo da pobre Genoveva de Brabante. Com tanto cor-de-rosa, tanto azul, onde prefigurar triângulos e florestas, tenebrosas e côncavas intenções, passos inebriados pelo cheiro da mais secreta carne humana? Mesmo que não fosse Combray o meu objectivo. Com as grinaldas de flores e as taças de frutos, onde achar aquela luz coada que, manhã tão cedo, fazia aparecer sobre as portadas das janelas, sombras que com o mar se confundiam? Não, daquela sala, ao contrário da da musa, não me parecia poder emanar qualquer passado merovíngio.2 - Até que chegaram os alemães, com nomes de Bergman. Vogler, nome de Max von Sydow, o mago, em "Ansiktet" ("O Rosto"), ou de Erland Jopephson, o encenador, em "Efter Repetitionen" ("Depois do Ensaio"). Ou, se me virar para a banda feminina, nome de Liv Ullmann, a actriz, em "Persona". ou de Ingrid Thulin, a amante do caixão, em "Vargtimmen" ("A Hora do Lobo"). Ambos eram o oposto físico desses macilentos e assustados actores. Sabiam a cerveja loura e cheiravam a saia de saibro. Mas lá se amanharam, quando tocou a lanternas. Pediram-me o Proust (primeira surpresa). E se não me deram a ver nem Golo, nem Genoveva, (será que os voltarei a ver?), conseguiram que eu me esquecesse dos anjinhos rosados e, sozinho, de cabeça nos joelhos, me sentisse incapaz de nomear o mal-estar que me causou a intrusão do mistério e da beleza, nessa sala tão despovoada de mins. "L'influence anesthésiante de l'habitude ayant cessé, je me mettais à penser, à sentir, choses si tristes."Lembro-me de ver o Barba-Azul. A oitava mulher acabara de fugir do quarto proibido, com os olhos pela boca fora depois de visto o que viu. Fechara tudo a sete chaves e eis senão quando reparou na mancha roxa (não é encarnada, é roxa) que se espalhava pela chave maldita. Lavou-a, lavou-a, e a mancha mais manchava. De que lhe valia agora ter tanto medo, de que me valeu agora ter tanto medo, de que me valeu a mim tê-lo tido, outrora? Descidos do cavalo de ébano, já o marido lhe perguntava pelas chaves. A história era consideravelmente mais resumida, mas os corpos eram de uma essência luminosa e sobrenatural, essa a que Proust chamou "transvertebrada".Depois, a voz do mago Vogler tornou-se mais amável. Introduziu um personagem "que vocês todos vão reconhecer". Era Napoleão, imóvel, de costas, olhando o mar. Insensível passagem a outro vidro, feita com mestria e em bonito encadeado. Diante de Napoleão, desaparecia o mar e apareciam as tropas em parada. Uma diafaníssima violinista polaca, de láctea pele e cáfio cabelo, tocava "A Marselhesa". De repente, deteve o arco e o punho, tão de repente como novo encadeado nos levava à imagem inicial. Com essa suprema simplicidade, Napoleão contemplando o mar, passava a ser Napoleão em Santa Helena, recordando os seus dias de glória. Nenhum cineasta faria melhor. Não me recordo de projecções mais inquietas.3 - De que é que eu estou para aqui a falar? Hoje, é o primeiro dia da minha definitiva loucura? Acalme-se a vossa leitura. Estou simplesmente a descrever, com alguma subjectividade é certo, parte de um espectáculo de lanterna mágica que teve lugar na Cinemateca no fim-de-semana passado. Diz-se que o nome "lanterna mágica" apareceu, pela primeira vez, em 1668, quando o matemático jesuíta Francesco Eschinardi descreveu a "laterna, quam dicunt magicam". Uma máquina simples, uma espécie de caixa munida de uma fonte de luz artificial, um espelho côncavo e um sistema de lentes, que permite projectar, numa superfície lisa, imagens ampliadas de vidros pintados com cores transparentes.Chamaram-lhe "lanterne de peur", "lanterne sourde" e as pessoas diziam que ela permitia ver o Paraíso, o Inferno, Deus e os demónios. Se não permite, permite o Diabo por ela. A projecção suprema era a figura da morte, esqueleto inspirado em Holbein. Conta-se que um rei da Dinamarca (Frederico III) morreu poucos dias depois de o ter visto dançar macabramente.No século XVIII, a lanterna mágica já mostrava tudo: as execuções dos jacobinos, cenas eróticas, teatros de morte, jardins de prazer.Hoje, esses espectáculos são raros, ao menos em Portugal. Mas quem viajou entre Cupidos e o Barba-Azul, tigres e ogres, nas tardes anoitecidas da Cinemateca, viu mais do que uma curiosidade. Atravessou nalguns minutos séculos de civilização e, com a grande arte das luzes e da sombra, descobriu que a imobilidade das coisas em nosso redor lhes é imposta pela nossa certeza que elas são elas e não outras, pela imobilidade do nosso pensamento face a elas. Mudem as luzes e as sombras e nada é idêntico e menos do que tudo o fica a nossa ideia sobre o que chamamos as coisas. É por isso que o cinema é mágico.5 - Ingmar Bergman, que acima citei a propósito do nome Vogler, conta nas memórias - chamadas "Lanterna Mágica" - como no Natal dos seus dez anos trocou com o irmão um "cinematógrafo" por cem soldados de chumbo.O aparelho combinava várias possibilidades de projecção: vidros pintados e um filme sépia com três metros. A fonte de luz era um candeeiro de petróleo. Bergman acendeu o candeeiro e dirigiu o feixe de luz para uma parede pintada de branco. Então viu.Viu um prado. Viu uma rapariga a dormir deitada no chão, com vestido aparentemente folclórico. Quando deu à manivela, a rapariga acordou, sentou-se, levantou-se lentamente, estendeu os braços para ele, virou-se de costas e desapareceu pela direita. Mas o mais mágico, diz Bergman, é que se ele continuasse a rodar a manivela, a rapariga reaparecia deitada, acordava e refazia os mesmos gestos. Infinitamente.Alguém definiu já o cinema (creio que foi Renoir) como a arte de fazer fazer fazer coisas bonitas a mulheres bonitas. Bergman define-o como a arte de fazer desaparecer mulheres bonitas, que, se voltam sempre a aparecer, voltam também sempre a desaparecer."Somewhere over the rainbow". Quem é que teve a ideia de ir buscar a Judy Garland para presidir à inauguração da Cinemateca?.