Isabelle Huppert: "É como uma morte vertical"

Na sala demasiado cheia de móveis, a mãe (Annie Girardot) punha a mesa para o jantar - o arrastar das pantufas mais o tilintar dos pratos e talheres e o gritar permanente da televisão. Na casa de banho, ela, Isabelle Huppert-Erika Kohut, de robe às flores, um espelho numa mão, uma lâmina na outra, sentava-se na borda da banheira, abria as pernas e mutilava-se metodicamente no sexo, um cordão de sangue a escorrer sobre o branco imaculado da banheira, as pernas e os pés nus a retesarem-se. Foi a penúltima vez que a vimos.Era a professora de música vienense no centro de "A Pianista", do austríaco Michael Haneke, filme que lhe valeu, em 2001, no Festival de Cannes, o seu segundo prémio para melhor actriz (o primeiro foi em 1978, por "Violette Nozière", de Claude Chabrol).Depois de toda a brutalidade de uma história de sexualidade reprimida e desejos castrados, Huppert já esteve outra vez nos ecrãs nacionais, a partilhar com Danielle Darrieux, Catherine Deneuve e Fanny Ardant o êxito de bilheteiras "8 Mulheres", de François Ozon - 3,1 milhões de espectadores em França. Hoje mesmo a sua perturbadora presença volta a Lisboa, desta vez em carne e osso, no palco da Culturgest, onde, às 21h30, se estreia "4.48 Psicose", numa encenação do conceituado Claude Regy, e que chega a Lisboa após um mês de carreira em Paris, no carismático palco do Bouffes du Nord.Não é a primeira vez que Huppert passa por Lisboa como actriz de teatro. Esteve cá em 1995 com "Orlando", de Bob Wilson, trabalho também apresentado na Culturgest.Mas desta vez ela está sozinha. Não que esteja totalmente só em palco - tal como da primeira vez que a peça foi encenada em Portugal (em 2001, pelo coreógrafo João Fiadeiro, para os Artistas Unidos), Regy optou por dar corpo a duas personagens, e por isso está lá o médico (Gérard Watkins), espectro de amante de uma jovem à beira do suicídio.Contudo Huppert está sozinha, porque encarna um despojo extremo de desamor. Duas horas, em pé, imóvel. Espantosamente imóvel, dizem. Até à morte.Nascida em 1955 em Paris, apesar de ter crescido em Ville d'Avray, agarrou, desde o início, sem dúvidas, uma carreira como actriz. Não por acaso conta por vezes a história de como conseguiu o primeiro papel em cinema, em 1971: bateu à porta do estúdio e disse "Estou aqui". Rapidamente se tornou numa das mais conceituadas e respeitadas actrizes da sua geração, trabalhando com nomes que vão de Godard a Hal Hartley, de Schroter a Chabrol, de Pialat a Trintignant. Participou até hoje em 60 produções cinematográficas - dentro de três semanas estreia em Portugal o novo filme de Werner Schroter, "Deux", em que se desdobra em duas gémeas, e depois "Temps de Loups", estando a ser agora iniciada a montagem de "La Vie Promise". Entre essa vertigem, não deixou o teatro, por onde começou a sua formação, no Conservatoire d'Art Dramatique de Paris. Da última vez foi "Medeia", agora é Sarah Kane.ISABELLE HUPPERT - Foi o Claude Regy que me propôs o texto há um ano e meio. Eu conhecia algumas coisas da Sarah Kane, tinha visto uma encenação de "Purificados", em Paris, apesar de não conhecer esta peça. Li-a e... É isso. Não fiz sequer um estudo aprofundado da sua obra, não mergulhei no seu trabalho, porque "4.48" é uma peça muito diferente das outras, é uma peça mais poética, sem os elementos que fizeram a celebridade da Sarah Kane, a violência física ou sexual. Aqui ela conta os seus últimos dias antes de se suicidar. É mais sobre ela, estamos no seu imaginário interior.Nem sequer se trata de um texto dramatúrgico clássico - não há indicações cénicas nem de personagem.Pois não. Ainda que, na verdade, quando se começa a trabalhá-lo se perceba que foi pensado para ser interpretado.A última frase é o pedido "fechem as cortinas" que é como quem diz "cai o pano".Pois. Isso remete imediatamente para o espaço teatral. Esta peça está sempre situada no espaço teatral. Sinto quase que ela [Kane] escreveu esta peça pondo-se em cena. Podemos quase pensar que ela pensou fazê-la ela mesma. Quando diz "vejam-me desaparecer"... A um tempo a metáfora do seu caminho para a morte e uma hipótese de didascália, uma indicação de luzes, por exemplo?Exactamente. Mais: essa maneira de se dirigir ao espectador é extremamente violenta. É isso que faz com que o espectador seja muito activo nesta peça. Ele embarca com ela numa experiência comum unicamente por olhar. Uma das coisas que se diz frequentemente da forma como trabalha é que não actua, engole uma personagem para lhe dar corpo. A quem está aqui a dar corpo?Não tentei fazer viver ninguém em particular, mas é forçosamente ela [Kane] que está aqui. É a sua escrita, as suas palavras, os seus ritmos. Ela está muito presente [no texto]. Impõe silêncios no que escreve. Impõe uma maneira de dizer as coisas. "4.48" é um pouco como uma canção, é algo por vezes muito concreto, por vezes muito poético. Eu respeitei essa forma, ao respeitá-la faço forçosamente com que Sarah Kane esteja presente. Até porque ela é tão subversiva tanto pela forma como pelos conteúdos. É a maneira como ela diz as coisas, confiando imensamente nos silêncios... Na sua escrita é também nos silêncios que está a palavra. Evidentemente o silêncio no teatro é sempre especial porque deixa uma enorme porta aberta à imaginação.Além do silêncio há nesta encenação a questão da imobilidade. Como chegaram a ela?Por puro acaso. A dada altura concluímos que esta posição seria a mais forte em relação à peça. Pouco a pouco fui deixando de me mover. Não foi uma ideia conceptual. Foi o resultado de um processo. É como uma morte vertical.Com Michael Haneke, para "A Pianista", houve também muito silêncio, muitos gestos mínimos. Essa prestação influenciou-a de alguma forma em "4.48"?Não. Mas muita gente me disse que ao ver a peça se lembrou do filme. É talvez porque há pontos comuns, no desespero, na dificuldade de viver... É verdade que são duas figuras que estão imobilizadas, imobilizadas na sua dor, na sua incapacidade.Na procura do amor impossível. Amor que em "4.48" assume formas múltiplas. Podemos imaginar que ela está apaixonada pelo médico, mas depois esse amor que fica sem resposta remete-a para outros amores mais antigos. Acho, por exemplo, que há o amor pela mãe. O amor por aquele homem remete-a para outro amor impossível, que é o amor da mãe, e talvez do pai.Penso que há nelas uma grande compaixão pelo mundo. Concretamente no caso de "4.48" sinto uma grande vitalidade. Trata-se aqui de alguém que me parece que teria gostado de viver. Não pôde. Mas teria gostado. Como frequentemente acontece com pessoas que decidem que não podem continuar viver, ela é alguém que exige muito da vida. Mas eu não chamo a isso ternura.Li que uma das suas frases preferidas é uma citação de René Char: "A lucidez é a ferida mais próxima do Sol.""4.48" é uma peça sobre a lucidez e essa é uma frase que a Sarah Kane poderia ter escrito. Ainda que no seu caso fosse mais do que uma ferida. Era um golpe mortal. Com o qual lidava também com humor, um humor derrisório. Penso numa passagem em concreto, qualquer coisa como "Fui ao médico, ele disse-me que eu tinha...f+bf-b"...oito minutos de vida, eu tinha estado na merda da sala de espera meia hora". Sim, há muita ironia. Ela diverte-se, por vezes.f+bf-bComo é esta experiência para si, de atravessar todas essas nuances, em duas horas, imóvel?É, como diz, uma experiência. É qualquer coisa que vivo e atravesso de uma forma mais intensa do que se estivesse no campo de uma gestualidade mais clássica, mais previsível. É uma experiência, mais do que uma interpretação.Em relação a "A Pianista disse uma frase que me parece poder-se aplicar também a esta peça e à estrutura dramatúrgica a que chegou com Claude Regy: "É preciso tempo para ler um rosto silencioso."Em "4.48" os silêncios são muito longos, portanto o público pode ler neles todo um romance [risos]. No cinema o silêncio é algo que se observa, no teatro é algo que se sente. Os silêncios são habitados pela frase que os antecede. O silêncio nunca está sozinho. Significa o que a última frase dita o faz significar. O silêncio é o tempo de instalação dessas palavras. É um trabalho subtil, certamente. Gerir os silêncios é gerir o ritmo. É isso que é divertido.É a segunda vez que utiliza a palavra divertido em relação a esta peça, em que há uma enorme tristeza, uma dor constante.É teatro. Ainda que um tanto particular. Apesar de "4.48" ser uma peça que toca o espectador de uma forma bastante profunda, eu tento que para mim não seja apenas dor, que seja um trabalho de actriz.

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