Martin Scorsese
"Gangs of New York", de Martin Scorsese, estreou-se finalmente no mercado americano. As reacções são divididas, entre os que se maravilham e os que consideram que a montanha, afinal, pariu um rato. Mas maior do que o filme é o sonho de um dos maiores cineastas americanos: mergulhar nas fundações mais sombrias da identidade americana. E tentar "o épico americano... algo de grande alcance com uma história tradicional e um conflito tradicional". E chegar ao Óscar, assume.
É difícil imaginar que espécie de filmes Martin Scorsese poderia ter feito - se é que faria algum - se tivesse permanecido em Queens. Ele causa gargalhadas quando confessa, perante uma audiência, que viveu os seus primeiros anos no bairro numa casa geminada, que tinha uma árvore no quintal. "E tinha folhas!", dispara na sua voz rápida, e todos desatam novamente às gargalhadas, ao imaginarem o grande cineasta americano a crescer nas ruas à volta de algo verde. Foi em 1950, quando tinha sete anos, que o pai se zangou com o senhorio e a família foi morar com os avós para a Elizabeth Street, a Little Italy de Manhattan. O rapazinho asmático ficava a olhar pasmado da janela do terceiro andar para as mercearias, vendo os bêbedos a cair na Bowery, e os desordeiros locais. Martin tinha uma saúde tão débil que não podia descer para brincar. Por isso, os pais levavam-no ao cinema. Às sextas-feiras, recebiam a visita dos familiares sicilianos, que se juntavam à volta da sua televisão de 16 polegadas, a fim de verem semanalmente as emissões de filmes italianos, os clássicos neo-realistas de Rosselini e De Sica, que lhes pareciam ser "filmes caseiros". E quando o rapaz ficou apto para fazer filmes, começou com a sua própria versão de "home movies", recriando o que via emoldurado através da janela.O filme que lançou a carreira de Scorsese começa com a sua própria voz a dizer: "Você não se redime dos pecados na igreja - mas sim nas ruas", e a primeira imagem foi a do então desconhecido Harvey Keitel a acordar de um pesadelo, fixando depois o espelho, até que irrompia o som das sirenes, seguido de uma música das Ronettes, "Be My Baby", em que a batida das primeiras notas coincidia perfeitamente com o baixar da cabeça de Keitel para a almofada. Scorsese fez 30 anos na noite em que filmou a cena culminante de "Mean Streets" (1973), e a prenda de anos que deu a si próprio foi um papel. O rapazinho que era doente no passado fazia de assassino silencioso no assento de trás de um carro, enquanto baleava o então quase desconhecido Robert de Niro.Após três décadas, reuniram-se novamente no mês passado - de Niro, Keitel e outros que fazem parte da família criativa de Scorsese -, para festejar o 60º aniversário do realizador que ainda faz filmes sobre as ruas. No dia do aniversário, num restaurante da Village, ainda estava a "remendar" o novo filme, no qual tenta vislumbrar como era a vida há 150 anos. Scorsese ainda se dá a si próprio a hipótese de participações especiais, excepto em "Gangs de Nova Iorque", que se estreou nos EUA a 20 de Dezembro [em Portugal, em final de Fevereiro]. O ano é o de 1860 e ele faz de aristocrata citadino. Scorsese diz que o "casting" foi feito de forma a que a mulher e a sua pequena filha pudessem ser parte do elenco. No entanto, esteve tentado em fazer o papel de uma das almas desesperadas do bairro Five Points, o campo de batalha dos "gangs" liderados por Leonardo di Caprio e Daniel Day-Lewis, mas não estava para pôr a filha em ruas lamacentas com porcos à solta. Assim, os Scorsese fazem de ricos."Muitas pessoas que me são chegadas dizem que sou rico", afirmou. "Mas depois deste filme, acho que já não sou", ri-se tanto quanto as pessoas que o ouviram falar sobre a árvore que tinha em Queens, apesar de não ser piada nenhuma o facto de ter investido milhões em "Gangs of New York", filme que já sonhava fazer há décadas. Agora que o sonho se tornou realidade, o que é pensa? "Poderei continuar a trabalhar? É tão simples como isso."o sovaco do mundo. Tal como muitos dos seus filmes, Scorsese diz que "Gangs of New York" tem as suas raízes em histórias que vêm "das pedras da calçada". No tempo em que morava em Elizabeth Street, refugiava-se por vezes na Catedral de S. Patrick, que data de 1809, perto da sua casa. Espantou-se que o nome não lhe soasse italiano, e assim as suas dúvidas de rapazinho levaram às histórias sobre "as pessoas que vieram antes de nós". Uma dessas histórias relatava como alguns dos primeiros imigrantes irlandeses se reuniram em frente à catedral para repelir um motim originado pelos "nativistas", que desdenhavam a gentalha que fugia da calamidade que atingira a agricultura na Irlanda e chegava a Nova Iorque. Scorsese achou que a demonstração dos seus vizinhos marcou "a aceitação do que era suposto ser a América... deixando entrar os imigrantes".Anos mais tarde, ficou novamente intrigado com aqueles manifestantes irlandeses, quando tropeçou num livro escrito em 1928 por Herbert Asbury, com crónicas do "underworld" americano. Scorsese lembra-se bem da data em que começou a ler "Gangs of New York": o primeiro dia do ano de 1970. Encontrava-se de visita a amigos que tinham uma cabana em Long Island, e o livro encontrava-se nas prateleiras. Não tinha enredo, mas contava histórias de bandos que roubavam a área da Baixa de Manhattan. Vestiam-se com roupa elegante e apelidavam-se de "Plug Uglies", "Bowery B'hoys", "Dead Rabbits" e por aí fora. Alguns viviam numa velha fábrica de cerveja onde se diz que uma jovem pedinte foi morta por causa de um cêntimo.O argumentista Paul Schrader diz que quando se encontrou com Scorsese em 1972, em Los Angeles, o realizador nova-iorquino mencionou que queria "filmar dois livros, 'A Última Tentação de Cristo' e 'Gangs of New York'". "Declaração que achei grandiosa vinda de alguém cujo maior prestígio era um filme produzido por Roger Corman, 'Boxcar Bertha', que era o produto típico de 'drive-ins'", acrescenta Schrader. Outro amigo, o músico Robbie Robertson, achou que o livro "Gangs..." era ideal para Scorsese. Porquê? Porque escondia uma Nova Iorque oculta, "o mais nojento e corrupto sovaco do mundo".Scorsese parecia determinado em mostrar o oposto da visão das ruas limpas. Woody Allen podia colocar em "Manhattan" Gershwin como música de fundo; mas ele não. Francis Coppola podia retratar os chefes da mafia como a personificação da honra e de valores familiares em "O Padrinho"; mas não era assim que o pequeno Martin via pela janela os janotas que se pavoneavam na rua. Finalmente, pediu ao seu melhor amigo, Jay Cocks, crítico de cinema da "Time", que lhe escrevesse um argumento. Por volta de 1977, tinham um esboço. Mas, por essa altura, Scorsese realizara "Alice Já Não Vive Aqui" e "Taxi Driver", e ambos fantasiavam criar um épico em várias partes de "Gangs...", terminando o primeiro filme com os motins de Nova Iorque em 1863, e tendo as personagens a construir a Ponte de Brooklyn na segunda parte, "Gangs II".Fosse qual fosse o prestígio que Scorsese tinha adquirido até então, não foi suficiente. Os estúdios recusaram o projecto. "É demasiado grande, é muito caro, é demasiado louco, é muito violento - e assim sucessivamente," lembra-se Cocks.Scorsese é o primeiro a dizer: "Os meus filmes não são para toda a gente." Mas a ironia com "Gangs..." era que desta vez ele estava a propor abraçar a fórmula de Hollywood.Normalmente, Scorsese está mais interessado na forma, não se importando se as audiências sentem ou não empatia pelas suas "personagens negativas", como os membros do "gang" de Joe Pesci em "Tudo Bons Rapazes", que matam só por os olharmos de soslaio. Mas com "Gangs..." ele queria tentar a sua sorte num género já estabelecido, "o épico americano... algo de grande alcance com uma história tradicional e um conflito tradicional". Concentrou-se totalmente no estudo de um "milieu", investigando histórias de casos reais, desde a maneira como os patrões se enchiam de aguardente através de mangueiras a como os ladrões de bolso usavam armas falsas para se protegerem. Mas também imaginou as personagens principais com papéis familiares e típicos, como "o ingénuo, o vilão e o herói".Cocks e Scorsese apostaram numa história de vingança - a de um filho que vinga a morte do pai, tema antigo extraído de filmes populares de "Padrinho II" a "Batman" e "Harry Potter". O argumento centrava-se num jovem imigrante, Amsterdam Vallon, que enfrenta o líder dos "nativistas", William Cutting, aliás "Bill, the Butcher", que assassinou o seu pai, o chefe dos "Dead Rabbits". Durante a sua demanda por justiça, o herói apaixona-se por uma ladra das ruas, Jennie Everdeane.Só depois de 1989 é que Scorsese achou que deveria haver um relacionamento mais complexo entre o vilão e o herói. Nessa altura, os seus pais estavam a atravessar uma fase difícil e, durante uma viagem ao Japão, leu novamente o argumento e achou que Amsterdam Vallon e Bill, the Butcher ("o carniceiro"), poderiam ter entre eles uma relação simbólica de pai e filho. Cock reviu o argumento e entregou-o em 1993. Ainda assim, não conseguiram vendê-lo.Foi então, em Janeiro de 1999, que Mike Ovitz - o antigo superagente, cuja lista de clientes incluía o galã de "Titanic" - o visitou. "Mike Ovitz veio ver-me e disse: 'Qual é o filme que queres fazer? Eu tenho o Leonardo di Caprio.'"processo infernal. À pergunta o que é que é "a vida nas ruas", Scorsese responde: "É sobrevivência nua e crua. Aprendemos rapidamente formas de nos mantermos vivos. Tanto a nível emocional e psicológico, como de todas as formas possíveis e imaginárias." E é assim também, para ele, o processo de fazer um filme. "É um processo infernal", diz, e não pretende que "Gangs..." tenha sido uma excepção. Durante as quatro horas que durou esta conversa, nos escritórios na Park Avenue, Scorsese apenas se alterou uma única vez, quando lhe perguntaram qual teria sido a interferência do estúdio no produto final."É um assunto que me toca a mim, à Miramax, a Weinstein e tudo o que gira à volta disso", diz. "Estou tão cansado. Não quero entrar nesse assunto." De facto, estava exausto após a viagem promocional ao Japão, que fez com Leonardo di Caprio. Cansado também estava das bisbilhotices que foram aparecendo, do tipo "o orçamento foi excedido e o estúdio e o realizador estão zangados um com o outro". "A sério, e mais o quê?"Scorsese sabe que a realidade é sempre a mesma para qualquer realizador que precise que o estúdio invista uma grande maquia: "Mais dinheiro quer dizer menos liberdade." Embora grande parte do financiamento de "Gangs.." esteja coberto pelos direitos de venda no estrangeiro - The Initial Entertainment Group pagou 67 milhões de dólares por esse privilégio -, a distribuição nos EUA é feita pela Miramax. Isto significa que Scorsese teve que partilhar a dinâmica "dinheiro/liberdade" com o imponente Harvey Weinstein, que fez a sua imagem de marca garantindo grandes audiências - e Óscares - com filmes independentes que outros considerariam demasiado "arty"."Gangs..." foi filmado nos estúdios da Cinecittá, em Roma, que Scorsese considera "sagrados", porque foi aí que rodaram muitos dos clássicos que via com os pais na televisão a preto e branco. Os estúdios foram convertidos na Nova Iorque do século XIX, durante os 137 dias que duraram as filmagens, concluídas em Março de 2001.Cocks, que fez uma visita no final, diz que presenciou cenas do "costume", pedidos que iam de "tem que ser mais curto" a "precisas realmente deste elefante?". Na história dos filmes que ultrapassaram o orçamento, "Gangs...", que foi orçamentado em 90 milhões, está longe de ter batido o recorde. "Agora dizem que custou 100 qualquer coisa, 105, 108 milhões", afirma Scorsese.Weinstein foi um dos presentes na festa de aniversário do realizador, a 17 de Novembro. O que quer que tivessem dito durante a montagem da versão final de 2h38m, Scorsese não vai culpar o produtor se os espectadores não gostarem do que estão a ver. "O que cortámos lá se foi... assumo totalmente a responsabilidade."Quando os custos de produção subiram, Scorsese ofereceu-se para disponibilizar parte do seu salário (cerca de dois milhões de dólares). "Um facto que me coloca num bonito estado. Estou inspirado para trabalhar novamente", diz rindo-se outra vez, "porque preciso".Nunca foi daqueles que fez um final "à la Hollywood", mas este filme deveria ter um. Quando as filmagens acabaram, na Primavera de 2001, a expectativa era que "Gangs..." estivesse pronto para ser exibido no Natal desse ano e que Weinstein libertasse a magia da Miramax, fazendo com que o realizador fosse galardoado com o Óscar que lhe foi negado até à data. Scorsese não é um artista que se esteja nas tintas para estes assuntos. Ele poderá acreditar que o mais importante é que um trabalho fique para as gerações futuras, mas concede: "Tenho de admitir, vindo de onde eu venho, e lutando para fazer o que tentei fazer ao longo dos anos, que seria óptimo ter reconhecimento."Diz que nunca considerou realístico esperar que "Gangs..." estivesse pronto há um ano e que ele e Weinstein estavam preocupados pelo facto de não ser apropriado mostrar a violência e o caos na Baixa de Manhattan tão próximo dos acontecimentos de 11 de Setembro. Mas um ano extra viu os iniciais sussurros de antecipação darem lugar a mexericos sobre Scorsese e Weinstein, e à especulação de que havia algo de errado.Há muitas razões para estar do lado Scorsese: primeiro, porque alguns dos seus filmes foram inicialmente considerados demasiado violentos, e mais tarde foram declarados os melhores da sua década; depois, porque o seu trabalho é imitado, quando vemos figuras de animação na TV perguntando a si próprias: "are you fuckin' talkin' to me"? [como Robert de Niro em "Taxi Driver"] ou as suas campanhas, com Spielberg e outros, em favor da preservação de clássicos, antes que o negativo se desintegre. "Acho que ele compreende que as pessoas torcem por ele", diz Schrader, autor do argumento de "Taxi Driver", "Touro Enraivecido" e outros. "Ele também sabe que há muitos, talvez ainda em número superior, que puxam por ele para ele falhar. Um realizador que não seja paranóico vive na lua."Mas uma paranóia saudável permite ser optimista. Após o regresso do Japão, Scorsese ficou encorajado em saber que algumas das primeiras pessoas que viram o filme, acharam que os "gangs" de Five Points eram mais do que meros precursores do que aconteceu na América - como uma parábola do momento actual da história, quando as nações parecem menos importantes do que bandos tribais construídos à volta do terror ritualizado. Os amigos dizem que Scorsese está mais nervoso do que nunca, quando afirma: "O único reconhecimento que quero agora é poder fazer outro filme."Mas não é o quer dizer literalmente. Já assinou outro contrato para fazer outro filme com di Caprio, "Aviador", sobre o jovem Howard Hughes.Em tempos acreditava que um realizador era capaz de fazer qualquer tipo de filme, fosse um musical, uma comédia ligeira ou uma aventura de piratas. Mas, enquanto esteve a patinhar neste caminho ao longo dos anos, nunca se sentiu confortável como realizador de encomendas."É difícil para mim fazer o filme de outra pessoa", e é isso que o preocupa: ser obrigado a fazê-lo. "Creio que continuarei a trabalhar se puder fazer filmes que outros queiram que eu faça. No entanto, não sei se posso... Quais são os desafios para mim, se fizer um 'blockbuster' de Verão? Não estou interessado."Schrader acredita que Scorsese empola a questão, pensando que a sua competência como realizador é posta em causa. "O que é posto em causa é a sua habilidade em fazer filmes pessoais de alto-orçamento a um ritmo calmo", diz Schrader. "Ele retrocedeu uma vez, mas em 'After Hours' provou que pode fazer um filme com base num orçamento limitado. Se quiser poderá repetir a proeza. Ele não quer e não vou culpá-lo por isso. Mas lá que pode, pode."