a violação de Vincent e Monica
A câmara gira em torno da intimidade de Vincent e Monica, como uma abelha atrás do mel. "O que se sente", diz Vincent, "é que Gaspar Noé nos viola um pouco". E aqui ficam mais confissões de um casal ao Y.
O casal Vincent Cassel e Monica Belucci não se deixa intimidar pela polémica à volta de "Irreversível". Os doia admitem: o filme não é indicado para todos - eles próprios não o aconselhariam a membros das suas famílias. Mas, melhor do que ninguém, eles são os mais indicados para falar de "Irreversível", um filme, largamente improvisado, em que a câmara gira, qual abelha em volta do mel, sobre Cassel e Belluci, e em que por isso o próprio relacionamento do casal está à superfície da tela.Lembra-se Cassel: "No primeiro dia de rodagem Gaspar [Noé] disse: 'Estão a acordar no quarto de dormir, após terem feito amor, Ok, façam o que quiserem, algo entre os dois e os vinte minutos.' E foi essa a verdade, ele não nos dirige realmente, não há argumento, gozámos de plena liberdade. Havia um artista atrás da câmara. O que se sente é que ele nos usa, que nos viola um pouco. A ideia do filme foi diluir os limites entre a ficção e a realidade, porque vemos tanta ficção que já não nos importamos com isso. Embora o aceitemos, não acreditamos realmente na história que nos querem transmitir no ecrã e apagamos os limites. A dada altura, durante as filmagens fiz uma asneira: quando a rapariga do filme me perguntou como eu me chamava, eu respondi 'Vincent', em vez de 'Marcus', que era o meu nome no filme, mas o Gaspar deixou ficar assim, só um detalhe para não nos esquecermos que não é pura ficção."É verdade que as cenas de amor não são reais, embora Cassel mostre um largo sorriso quando lhe perguntamos se teria filmado assim com outra actriz. "Espero bem que não", responde. "Poderia fazer este tipo de cena com algumas pessoas, e acho que para a Monica seria o mesmo. Mas quando vi o filme achei que havia ali coisas que faria só com a Monica, sítios onde não iria com mais ninguém. Foi por isso que Gaspar nos escolheu e esse foi o desafio para nós como actores: contribuir com as pequenas coisas que fazem a diferença."Belucci completa: "Vincent e eu conhecemo-nos, por isso foi mais fácil encontrar a forma como me tocava, me beijava na boca, me beijava os seios. Se o visse fazer isso com outra pessoa, acharia tudo um pouco menos pessoal."redenção. Cassel não estava preocupado por a mulher ter de filmar uma cena de violação que dura nove minutos. De facto até a encorajou, porque (tal como admite a própria Belucci) ela transformou-se demasiado num símbolo sexual e precisa ser tomada mais a sério pelo seu trabalho. A cena é inacreditavelmente convincente."Até agora, e talvez seja eu a culpada", diz Belucci, "os realizadores olhavam para mim como se eu estivesse por detrás de um espelho. Eles observavam-me sem me tocarem. Vim para o cinema porque sonhava com todas aquelas actrizes italianas, Sophia Loren, Gina Lollobrigida, Claudia Cardinale. Essas mulheres eram tão incrivelmente clássicas e ao mesmo tempo tão glamorosas, femininas e sensuais, e era como se eu quisesse retribuir aquilo que elas me transmitiam. Talvez, por isso, tivesse este tipo de atitude e os realizadores viam-me como algo misterioso. Em 'Malena' eu queria mesmo trabalhar com o realizador Giuseppe Tornatore num filme italiano, mas depois disso queria fazer algo diferente. 'Irreversível' é uma coisa completamente diferente. Era como se o Gaspar me tivesse tirado do espelho e dissesse: 'Vem aqui, quero fazer com que pareças real.'""Co-produzi 'Irreversível'", explica Cassel, "e sabia desde o início que esse era o filme com o qual a Monica poderia comprar o bilhete para a respeitabilidade. O que o filme transmite é tão óbvio: ela é linda, é tão linda, mas então é violada por um gajo que lhe diz: 'Pensas que podes fazer o bem te apetece só porque és bonita.' Punch punch! As pessoas que a odiavam no início pela sua maneira de ser, passaram a querer protegê-la, porque se sentem mal em relação ao que sentiam anteriormente."Cassel perguntou a Belluci se ela queria que ele estivesse presente quando rodassem a cena de violação, que seria feita num único "take", mas ela insistiu que ele fosse para o sítio onde tinham anteriormente combinado - Sul de França. O que ela faz é uma interpretação; mas ela não tem a certeza de como a fez. "O processo de um actor é muito individual, muito pessoal, é também irracional. De facto, não sabia como me preparar. Não sabia o que devia fazer até cinco minutos antes da cena" - e estala os dedos -"até que estivesse em frente da câmara.""Repetimos a cena seis vezes", explica, "mas só me lembro de quatro delas. Devo ter tido um 'blackout' nas duas últimas, mas sabia simplesmente que não queria repetir mais a cena. É claro que estava com medo de ser espancada."Não havia razão para preocupações, porque quem fazia de seu atacante era um "boxeur" profissional, Joe Prestia, que sabia quando se deter antes de lhe tocar na cara. Monica viu então o filme depois de acabado. "Não podia acreditar, a cena de violação parecia tão real. Compreendo que as pessoas ficassem mal-dispostas com isso e tive a mesma reacção, mas também acredito que tínhamos que mostrar o contraste entre o bem e o mal. Temos que compreender porque é que a personagem de Vincent faz o que faz no filme."Surpreendentemente, as filmagens não foram uma experiência tormentosa. "Logo que as cenas mais fortes acabaram, senti-me livre", afirma. "Regressei aos meus sentimentos, pude ir jantar, divertir-me e pensar noutras coisas. A melhor parte deste trabalho é a criação, quando estamos no 'set' - especialmente neste filme porque foi de facto muito estranho. Não é algo que se faça por dinheiro."um casal invulgar. Vincent e Monica são um casal invulgar. Ele é filho do actor francês Jean-Pierre Cassel; a mulher é a beleza italiana de voz rouca que está a tentar moldar uma carreira em Hollywood (completou as filmagens de "Matrix Reloaded" e "Matrix Revolutions" e está a rodar "Man of War" sob a direcção de Antoine Fuqua, com Bruce Willis, no Hawai). Estão em momentos diferentes das respectivas carreiras, têm objectivos diferentes e não é de admirar que a sua vida pessoal seja alvo de muitos rumores (logo a seguir ao filme, e depois desta entrevista, foi dada como certa a separação do casal).Mas Cassel diz que não coloca entraves à carreira de Monica. "Acho que a Monica está a ter um enorme êxito, mas somos diferentes", afirma. "É fácil para ela, pois tem estado a viajar desde os vinte anos. Foi necessário que tivesse que abandonar a Itália, caso contrário nunca teria encontrado trabalho. Veio primeiro para França e depois seguiu-se a América, é essa a sua natureza. Eu, pelo contrário, sou tão intrinsecamente francês, que quanto mais viajo mais me apercebo que sou mais do que francês, sou parisiense. A minha identidade está tão fortemente ligada a esta cidade e à geração de realizadores com os quais tenho trabalhado desde o meu início de carreira, que é o que acarinho. Este é acima de tudo o meu meio ambiente. Não sinto necessidade de atravessar o oceano e ir para a América. Acho que essa é melhor maneira de nos perdermos. A maioria dos actores europeus que vão para lá transformam-se nos maus rapazes da profissão o que é uma pena porque tanto Tim Roth como Gary Oldman são muito mais do que isso."Esta incursão de Cassel no cinema foi feita com o seu amigo Gaspar Noé, o realizador argentino que tem aura de pequeno génio. "Conhecia-o antes de saber que era realizador, do tempo em que conheci também Mathieu Kassovitz [que o dirigiu em "O Ódio"]. Costumava encontrar Gaspar em clubes nocturnos, é uma pessoa muito cosmopolita. Tenho a certeza que isso lhe dá uma perspectiva diferente, mas acho desde o início que é um indivíduo muito estranho."