Familiares e amigos são os principais abusadores sexuais de crianças

Os casos de abuso sexual de menores que chegam ao conhecimento do Instituto de Medicina Legal (IML) estabilizaram nos últimos anos, depois de terem aumentando substancialmente a partir de meados da última década. Mas há uma realidade assustadora que se mantém constante: a maior parte dos abusos sexuais são protagonizados por familiares directos, amigos e vizinhos das crianças. Os abusadores são muitas vezes os pais e os padastros, os avôs, os irmãos, e pessoas a quem os menores estão confiados."Mais de metade da violência sexual nas crianças acontece na família", afirma o presidente do IML, Duarte Nuno Vieira, lembrando, porém, que os casos que são denunciados às autoridades representam apenas "a ponta do icebergue", uma vez que se estima que "entre 50 a 90 por cento" das situações nunca cheguem a ser conhecidas. "Há uma espécie de conspiração do silêncio."Uma conspiração que tudo indica será mais acentuada nos casos das crianças internadas em lares e centros de acolhimento de menores - são escassos os casos de abusos sexuais de menores a viver neste tipo de instituições a dar entrada no IML. O problema é que estas crianças não têm na maior parte dos casos interlocutores à altura, alguém que acredite neles e que os ajude a vencer o medo e a vergonha e a denunciar a situação. E existe ainda um obstáculo suplementar: como as instituições estão envolvidas, fazem tudo para evitar que o seu bom nome seja posto em causa.Num trabalho em que foram analisados todos os casos examinados na década de 90 no IML do Porto (736), quase metade dos abusadores eram amigos da família e vizinhos (46 por cento) e mais de um quinto (21 por cento) eram padrastos ou os próprios pais. Quanto às idades, apesar de as adolescentes serem as vítimas preferenciais, 22 das crianças abusadas tinham menos de três anos, 58 tinham entre quatro e seis anos e 83 ainda não tinham completado dez.A severidade das consequências do abuso sexual no seio da família é de tal ordem que os especialistas têm-se dedicado a estudar a fundo este fenómeno. Há dois anos, peritos da Faculdade de Medicina do Porto conseguiram mesmo traçar um perfil do abusador familiar, depois de analisarem todos casos chegados ao IML do Porto entre 1997 e meados de 1999: em mais de metade dos casos, os ofensores eram os pais ou padastros das vítimas, tinham uma idade média de 34,3 anos e geralmente eram casados.Quanto às vítimas, essas eram sobretudo do sexo feminino e normalmente apenas denunciavam o caso quase dois anos após a primeiro abuso, repetido em 64 por cento dos casos. Um cenário que faz cair por terra a ideia feita de que os abusadores sexuais de menores são basicamente pedófilos e homossexuais.A directora do IML do Porto, Teresa Magalhães, um dos autores deste trabalho, faz questão de desmistificar uma outra ideia que ainda prevalece: a de que as crianças mentem. "Elas dificilmente inventam, ainda ainda que possam ter tendência para fantasiar. Se me aparece aqui um miúdo a dizer 'O meu pai pôs-me leitinho na barriga e depois lavou-me', é fácil perceber que não está a mentir."A verdade é que as denúncias aumentaram substancialmente ao longo da última década. Os dados do IML do Porto são disso mesmo prova: se no princípio da década de 90 o número de casos de abuso sexual de menores rondava as três dezenas por ano (35 em 1990, 39 em 91 e 33 em 92), a partir de 1994 começaram a aumentar, atingindo um pico em 1999 (163), ou seja, quatro vezes mais; a partir daí, estabilizaram (140, em 2000; 132, no ano passado; 101, até Outubro passado).As pessoas já "confiam mais no sistema de justiça, começam a ganhar coragem e a denunciar as situações", observa Teresa Magalhães, destacando alguns avanços importantes registados nos últimos anos. Em 1998, por exemplo, deu-se um passo fulcral para a obtenção de provas e vestígios nos casos de abuso sexual, ao criar-se um serviço de atendimento permanente, com um perito de escala, o que permite observar as vítimas a qualquer hora do dia e sem que estas tenham que passar primeiro pela polícia. Mesmo assim, num número elevado de situações continua a ser difícil obter vestígios e provas concludentes. O exame médico-legal é na grande maioria das vezes negativo, devido aos obstáculos decorrentes do longo intervalo de tempo transcorrido entre o abuso e a avaliação no IML (superior a 48 horas em 90 por cento dos casos), o que se deve quase sempre à enorme dificuldade de as crianças fazerem a denúncia. Por isso, frisa Teresa Magalhães, é fundamental sensibilizar todos os que lidam com menores - nomeadamente professores e profissionais de saúde - para estas questões. Nesta matéria, apesar de todo o trabalho feito, ainda há um longo caminho a percorrer: num trabalho recente realizado em várias escolas da região Norte, apesar de 76 por cento dos professores admitirem que deviam detectar e denunciar estes casos, mais de metade não se sentia competente para o fazer, por falta de informação.

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