O regresso de Henry Kissinger, profeta da "realpolitik"
As diferentes reacções dos dois lados do Atlântico ao regresso de Henry Kissinger ao centro político diz muito sobre o fosso cada vez maior entre os Estados Unidos e a Europa. Os europeus, conscientes de que o velho guerreiro da Guerra Fria ainda estava vivo, podem serem perdoados por pensarem que ele estava numa cela à espera de ser julgado por acusações de guerra ou vivendo a vida de um fugitivo, nunca dormindo na mesma cama duas vezes porque investigadores de direitos humanos o perseguem. Nos Estados Unidos, a resposta esmagadora à nomeação de Kissinger, 79 anos, para liderar uma investigação ao catastrófico fiasco dos serviços secretos que conduziu ao 11 de Setembro, foi uma mistura de alívio e afeição nostálgica. Para muitos americanos, ele é o homem sábio com um sotaque engraçado, secretário de Estado nas presidências de Nixon e Ford, o único que foi simultaneamente chefe de diplomacia e conselheiro nacional de Segurança, prémio Nobel da Paz, e agora é chamado a partilhar meio século de experiência internacional.Do ponto de vista do cidadão comum com um mínimo de interesse em assuntos internacionais, Kissinger nunca esteve realmente afastado. Desde o 11 de Setembro, ele tem aparecido regularmente em "talk-shows" televisivos e nas páginas de opinião dos grandes jornais, encorajando a "guerra ao terrorismo". As suas ideias têm um valor tão elevado que, no Verão, surgiu uma disputa sobre a correcta interpretação de um comentário que ele escreveu sobre a política a seguir em relação ao Iraque.Kissinger aprovou, de um modo geral, a decisão de confrontar Saddam Hussein no domínio das armas de destruição maciça, mas aconselhou a Administração Bush a procurar um amplo consenso internacional antes de avançar para uma guerra. O "New York Times" interpretou esta nota de prudência como oposição e foi duramente criticado, à direita, por o ter feito.Embora o lugar de Kissinger no "mainstream" de Washington nunca tenha sido seriamente desafiado, o seu principal detractor, o jornalista britânico residente em Washington Christopher Hitchens, que relatou o processo jurídico contra o ex-secretário de Estado no seu livro "The Trials of Henry Kissinger", é tratado aqui como uma mera curiosidade. Os seus argumentos têm pouca atenção da imprensa, sobretudo se comparada com a recepção que merecem na Europa.Kissinger tem sabido cultivar o seu estatuto de celebridade, aparecendo numa série de anúncios, ao lado de gente como Woody Allen, para atrair o turismo a Nova Iorque. No anúncio de Kissinger, ele é visto a correr à volta de um estádio vazio de basebol dos New York Yankees, imaginando-se a si próprio a marcar. A mensagem é a de que a Big Apple está ao alcance dos nossos sonhos.O profeta da "realpolitik", que em tempos afirmou ser o poder o máximo afrodisíaco, tem agora a possibilidade de reviver os seus sonhos - um homem de ideias cujos tempos voltaram a ser actuais graças às políticas do pós-11 de Setembro.A esta luz, o bombardeamento secreto do Camboja, que ele orquestrou em conjunto com Richard Nixon, pode ser considerado uma acção preventiva - conceito em que se baseia a nova doutrina de segurança nacional da Administração Bush. O mesmo se aplica ao papel que desempenhou no derrube de Salvador Allende no Chile e sua substituição por Augusto Pinochet. O clima que prevalece nos círculos de segurança nacional na era do terrorismo favorece acções preventivas contra potenciais ameaças antes de elas se transformarem em perigo real. É um clima que torna politicamente arriscado criticar até personagens controversas, e os democratas americanos, cronicamente avessos a riscos, tiveram de apoiar a nomeação de Kissinger. "Ele oferece estatuto, o que é importante", comentou para o "New York Times" Sandy Berger, conselheiro nacional de Segurança do Ex-Presidente Bill Clinton. "Ele oferece uma perspectiva histórica, que penso ser igualmente importante. E ele tem uma vasta experiência, que é relevante. É uma belíssima escolha."Em privado, os democratas consolam-se com o facto de o seu próprio veterano líder, o ex-senador George Mitchell, estar ao lado de Kissinger numa tentativa de garantir que o inquérito não será um total branqueamento. Ele sabem que Kissinger foi um manipulador da política doméstica. Há provas convincentes de que ajudou a convencer os sul-vietnamitas a rejeitar um acordo de paz negociado por Lyndon Jonhson nos últimos meses desta administração, que poderia ter salvo os democratas nas eleições de 1968. Pelo contrário, o colapso das negociações ajudou a eleger o homem de Kissinger: Nixon.Agora, Kissinger tem outra oportunidade de jogar estratégia internacional, um grande jogo onde a verdade é inevitavelmente sacrificada ao interesse nacional. Um jogo em que o "Maquiavel americano" é perito. No âmago das suas deliberações estará o papel da Arábia Saudita e a misteriosa relação entre a família real que a governa, o seus serviços secretos e o piratas do ar de 11 de Setembro - dos 19 havia 15 sauditas.Por outro lado, o Governo saudita é um aliado estratégico de longa data, que tem bases essenciais para uma guerra contra o Iraque, é uma fonte vital de petróleo e amigo da família Bush. É um dilema que poucos como Kissinger gostariam de enfrentar.O estadista de origem alemã também está bem colocado para apreciar a mistura de grande capital e política, uma alquimia que está no centro da Administração Bush. Como director da Kissinger Associates desde 1982, ele vendeu o seu talento como estratego político de Washington e os seus contactos internacionais a várias firmas clientes, a maioria das quais permanece anónima, mas que se supõe incluir a Exxon Mobil, a Arco e a American Express.Kissinger também está no "European Strategy Board" de uma companhia de investimento de Dallas chamada Hicks, Muse, Tate & Furst, um dos maiores contribuintes financeiros da carreira política de George Bush. Tom Hicks, um dos seus sócios, foi vital para a ascensão de Bush: comprar a equipa de basebol Texas Rangers, onde o Presidente tinha acções, ajudou a fazer dele um milionário.Tudo o que acima se escreveu pode explicar por que Kissinger não é uma escolha surpreendente de Bush. No entanto, não explica a aceitação popular, quase aclamação, que a sua nomeação recebeu. Isso tem, provavelmente, a ver com o sentimento nacional desde 11 de Setembro, que tem estado na defensiva por razões óbvias e particularmente vocacionado para a introspecção e dúvida pessoal.Já não existe apetência para o tipo de inquisição ao papel dos EUA no mundo que havia nos anos 80 e 90, sob a forma de livros e filmes sobre o Vietname e a América Latina - os palcos de Kissinger. No mais recente filme de Hollywood sobre o Vietname, os EUA voltam a ser heróis. E as aventuras da CIA no Chile, em El Salvador e na Nicarágua foram esquecidas.(...) Quando afirmou que "não há segundos actos nas vidas americanas", F. Scott Fitzgerald não imaginava que a moderna direita americana - ao contrário dos seus adversários liberais - não deixa os seus feridos no campo de batalha.(...) Kissinger foi ajudado a regressar da eterna obscuridade por um profundo desejo da parte dos conservadores do país de vingar humilhações do passado, quando os homens que viam como heróis eram forçados a responder perante a lei e, por vezes, a ir para cadeia.O segundo acto de Kissinger é o mais doce de todos - o seu passado não só não foi punido como parece agora o prólogo da futura política externa dos EUA. Exclusivo PÚBLICO/The Guardian