Supremo Tribunal Administrativo entendeu que não houve aliciamento dos menores molestados
O Supremo Tribunal Administrativo anulou em 1991 a pena de demissão da função pública que havia sido aplicada ao presumível pedófilo da Casa Pia, baseando-se no essencial em razões formais e sem pôr em causa a veracidade das acusações de abuso de menores formuladas pela direcção da instituição. Mantendo-se na estrita esfera dos formalismos administrativos, o tribunal também não atendeu ao carácter reincidente dos comportamentos atribuídos a Carlos Silvino da Silva ("Bibi") e mandou reintegrá-lo no serviço.Em resultado dessa decisão, o funcionário readmitido recebeu todos os ordenados devidos desde 4 de Outubro de 1989, data em que o então secretário de Estado da Segurança Social homologou a sua demissão por proposta de Luís Rebelo, o provedor demitido anteontem.Na origem deste processo, encontra-se um inquérito mandado elaborar em Maio de 1989 pelo provedor da Casa Pia de Lisboa, com base numa carta da mãe de um aluno que aludia à alegada homossexualidade de Carlos Silvino e ao facto de este aliciar o seu filho com ofertas várias. Na sequência desse inquérito, foi desencadeado um processo disciplinar, no decurso do qual o funcionário contestou a nota de culpa e negou o essencial dos factos que lhe eram imputados.Findo o processo, o instrutor e o provedor deram como provados todos os artigos da acusação, entre os quais avultavam aquele em que se dizia que "o arguido tomou banho com [um aluno identificado nos autos] na cave da Provedoria, ensaboou-o, teve toques esquisitos com ele, bem como lhe mostrou revistas pornográficas"; e um outro onde se afirmava que "com o mesmo [aluno identificado] teve uma masturbação em comum, à vista de cartas pornográficas, bem como uma tentativa de penetração".Os restantes artigos da nota de culpa sustentavam que Silvino manteve conversas com vários alunos no interior do colégio de Pina Manique [violando uma proibição que lhe tinha sido imposta pela direcção do estabelecimento em virtude dos seus comportamentos anteriores] e que deu "várias quantidades de dinheiro, bem como bolos e gelados" aos dois alunos identificados.Perante as conclusões do relatório final, que sublinhavam a reincidência do arguido neste tipo de atitudes, o instrutor propôs a sua "aposentação compulsiva e demissão" - proposta essa que foi remetida em Setembro de 1989, com o "concordo" do provedor, ao secretário de Estado que tutelava a Casa Pia, Arlindo de Carvalho, e a quem competia a decisão final.No processo submetido à tutela constava também o registo disciplinar de Carlos Silvino. Os quatro castigos que lhe haviam sido aplicados desde 1984 figuravam no documento, mas nos autos nada se dizia sobre as anteriores queixas e inquéritos relacionados com as suspeitas de pedofilia que sobre ele recaíam há muitos anos - nomeadamente aqueles a que agora se refere a ex-secretária de Estado Teresa Costa Macedo -, nem sobre o processo arquivado no Tribunal de Cascais, em 1982. Estribado num parecer favorável da auditoria jurídica do Ministério da Segurança Social, que entendeu dever ser aplicada ao arguido a pena única de demissão e não haver lugar a participação criminal, Arlindo de Carvalho despachou a demissão de Carlos Silvino, em 4 de Outubro de 1989.Inconformado com o seu afastamento, Carlos Silvino solicitou então ao Supremo Tribunal Administrativo a suspensão da eficácia do despacho de demissão, requerendo em paralelo a anulação do mesmo. No primeiro caso os juízes indeferiram o pedido em Janeiro de 1990, enquanto que, no segundo, deram razão ao recorrente, anulando a sua demissão e determinando a sua reintegração na Casa Pia, em Abril do ano seguinte."Carecendo o arguido de idoneidade moral para o exercício de funções, pressuposto da pena de demissão que lhe foi imposta [...], a sua presença na Casa Pia de Lisboa compromete irremediavelmente a prossecução dos objectivos a cargo deste instituto, no que concerne à educação e formação moral das crianças ali internadas", concluíram os subscritores do acórdão de 1990.Já a acção principal teve o desfecho inverso, uma vez que o acórdão, quanto aos artigos da acusação que referem práticas sexuais com o menor identificado, considerou que eles revelam "insuficiência de individualização das faltas disciplinares [...] pois são omissos quanto à circunstância de tempo ou de tempo e lugar, ou de tempo, lugar e modo, o que constitui nulidade insuprível por falta de audiência do arguido".A referência à "falta de audiência do arguido" tem aqui um carácter dificilmente entendível para os leigos, já que o mesmo acórdão dá como provado que "o instrutor iniciou o processo disciplinar, tendo apenas tomado declarações ao arguido, que negou todos os factos que lhe eram imputados no processo de inquérito, salvo quanto a ter tido várias conversas no Colégio de Pina Manique com vários alunos". A decisão dá também como provado que o arguido contestou por escrito a acusação e que foram ouvidas quatro testemunhas por ele indicadas.Relativamente aos artigos da acusação que aludem essencialmente às ofertas de dinheiro aos dois jovens, "para comprar revistas, rebuçados ou outras coisas" e à oferta de bolos e gelados, o acórdão entende que eles "se mostram despidos de qualquer conotação ilícita, [e] não consubstanciam nenhuma infracção disciplinar, pois não viola os deveres [do estatuto disciplinar] o funcionário da Casa Pia que conversa com alunos do Colégio Pina Manique, ou lhes oferece dinheiro para comprar revistas e rebuçados".Sobre as mesmas ofertas de Carlos Silvino aos alunos, os juízes António Fernando Samagaio, Coelho Ventura e José da Cruz Rodrigues insistem em que eles "não contêm em si nada de ilícito e, por outro lado, não são descritos como constituindo aliciamento para a prática de quaisquer actos desonestos, imorais ou desonrosos".