Máquina do Tempo

Um microondas num filme mudo? Convém dizer que "Juha", do finlandês Aki Kaurismaki, é um filme mudo, sim, mas realizado em 1999. Tropeça-se: para quê voltar à ordem primitiva do cinema? Porque, dirá o realizador, "as histórias perderam a sua pureza, a própria essência do cinema: a inocência". "Juha" é, portanto, um acto (reactivo?) de confessa nostalgia de um solitário que diz não confiar nos filmes de hoje. Pode soar como "bluff", mas não há nada de forçado aqui. Basta lembrar como o silêncio domina a sua filmografia e como em "Nuvens Passageiras" (1996), ou no mais recente "O Homem Sem Passado", os diálogos são esparsos e as personagens lacónicas.

Por outro lado, é o filme de alguém consciente da impossibilidade de voltar à pureza do mudo - por isso, há-de aparecer um microondas, subtilmente, não chegando a provocar curto-circuito, mas remetendo "Juha" para uma espécie de "no man's land". Máquina do tempo onde se baralham datas e referências. Entre-se nela porque a viagem vale a pena.

É uma daquelas histórias simples, que parecem vir do fundo dos tempos, sobre a aprendizagem do mundo: Juha (Sakari Kuosmanen) e Marja (Kati Outinen) são-nos apresentados por intertítulos, seguindo a bordo de uma moto. São a imagem da felicidade, saltitantes num dia de mercado que correu bem. Até que chega o homem da cidade, num descapotável ao vento onde se lê "Sierck". Melodrama à vista: Sierck, como em Detlev Sierck, antes deste partir para a América e se tornar Douglas Sirk.

Mas há outras pistas: a banda sonora, que subitamente assume uma modulação dramática, ameaçadora. Mudo, já se sabe, o cinema nunca o foi (só nos primórdios dos primórdios), mas sempre se fez acompanhar por uma partitura destinada a marcar as variações dramáticas. Filme mudo, "Juha"? Não, filme sonoro, concebido com o compositor Anssi Tikanmaki, algures entre a pop orquestral e um folk sinfónico e kitsch.

Mas, dizia-se, é uma história sobre a aprendizagem do mundo e há nela algo que parece sair dos contos infantis: podem ser apenas os grandes olhos abertos de Kati Outinen, figura frágil e pueril que se deixa fascinar pelo forasteiro e por ele há-de deixar Juha, rumo à cidade - como em "Aurora" (1927), de Murnau, George O'Brien era seduzido por uma "vamp" da cidade. É uma referência assumida por Kaurismaki, como tantas outras - Chaplin ("Luzes da Cidade"), Renoir ("Une partie de campagne") -, até porque o realizador diz ter estudado uma série de filmes mudos. É natural, são filmes que contêm dentro de si todo o cinema, e metendo-se pelas convenções do mudo adentro - iluminação, música, intertítulos, "gags" visuais -, Kaurismaki sabe que está a lidar com o peso da memória cinematográfica. Se avançou, sem medo, foi por reconhecer que a inocência, no fim de contas, é irrecuperável: por isso, Juha há-de ser sacrificado, anjo caído numa lixeira. Mas há momentos em que Kaurismaki quase nos faz acreditar...

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