História e histórias do Mosteiro de Alcobaça
O romance histórico "O Claustro do Silêncio", de Luís Rosa, a que foi atribuído o Prémio Vergílio Ferreira 2002
Corria o ano de 1834, quando Joaquim António de Aguiar, o Mata-frades, pôs em letra de forma um decreto que extinguiu a maioria das ordens religiosas e nacionalizou os seus bens. É nesse preciso ano que abre a narrativa que Luís Rosa faz chegar até nós, com mestria e saber, e que titulou "O Claustro do Silêncio". O claustro em questão é o centro nevrálgico do mosteiro dos frades cistercienses de Alcobaça. Da História e histórias que protagonizou ou a que emprestou as suas pedras para cenário saberemos sobretudo pela boca de frei Elias Cravo, monge, mas também combatente, de arma na mão, salvador de códices, em tempos perturbados, amante de saber e de pensar e de uma única mulher, Etelvina Góis. Apenas em dois breves momentos, para o final do romance, a narrativa abandonará o ponto de vista de Elias Cravo e será entregue a um narrador de terceira pessoa. Ora, contada a história da perspectiva do frade - a dada altura erigido herói pelo povo dos coutos, ou seja, das terras ao redor do mosteiro -, é pela sua memória e afectividade que somos guiados nos caminhos da História. O truque permite que recuemos, desse ano de 1834 - já no rescaldo das lutas entre miguelistas e liberais, em que foram grandes as convulsões, mas parcas afinal as mudanças, é-nos dito -, ao tempo das invasões francesas e mais atrás ainda ao momento da batalha de Aljubarrota. Antes disso foram-nos contadas as circunstâncias dos amores de D. Pedro e D. Inês de Castro, além de outras histórias. A narrativa é assim tecida de episódios de diferentes tempos históricos, apresentando-nos o romance diversos patamares temporais que percorremos sem sobressalto de inverosimilhança. Frei Elias narrador é aquilo que é enquanto homem e monge: tem bom senso, busca sempre o equilíbrio de quem sabe contextualizar, isto é, relativizar os factos e conhece bem os limites da natureza humana. Tem um interlocutor, frei João de Chiqueda, noviço e preciosa ajuda num passo difícil - tal como teve um suave protector, frei Leão de Alvorninha, ao entrar, sem vontade alguma, para o mosteiro; após a morte de Alvorninha, encontra renovado auxílio em frei Manuel dos Chãos.O que nos é contado flui a bom ritmo, numa prosa elegante e rica de vocabulário e apenas, na nossa avaliação subjectiva, num momento ou outro a achamos menos "natural" ou dramaticamente menos conseguida, como se nos afigura o discurso por de mais grandiloquente na boca de um homem moribundo, no caso frei Leão de Alvorninha. Dado o apropriado da linguagem para o tempo histórico da narrativa, parecem-nos desajustadas a expressão "causas ganhadoras" (p. 133) e o verbo "gerir" (p. 178); já "chamar de" e "tarde solarenga" constituem erros. Trata-se porém de minúsculos deslizes à vista do conjunto da obra. O cuidado posto em trazer até nós os homens e mulheres da nossa História longínqua tem absoluta eficácia pedagógica, que aumenta o interesse do romance. Com ele aprende-se com prazer. Ficamos, por exemplo, a conhecer o mosteiro não só por meio de competentes descrições, mas enquanto espaço habitado, usado por gente de carne e osso. Analogamente, são vivas as descrições das batalhas, designadamente a de Aljubarrota, não faltando sabermos que se deu num "Agosto tórrido", que no fim o rei estava exausto e que para acudir à sede dos combatentes, finda a batalha lá se espalharam pelo meio das tropas, "como bando de rolas bravas", as aguadeiras. Damos por nós a vê-las e a lembrarmo-nos do corrupio de bancas ao redor dos estádios em dias de futebol... Vida sem pompa, pois é.Há no romance, paralelamente, extensa informação sobre aspectos bastante pormenorizados, como sejam os encargos que o mosteiro impunha à gente dos coutos; as armas e respectiva origem social; e sobre a génese de dados termos ou expressões, ou seja, o romance não enjeita a reflexão metalinguística.Completado o deambular pelos marcos da História, unidos pela presença do mosteiro, regressamos ao princípio, ou seja, a 1834 e algum suspense e mistério foi esclarecido. Frei Elias cumpriu a sua missão de salvar o saber contido nos códices da fúria popular que se dirige contra o mosteiro, no seguimento da vitória liberal. E, embora o frade não tenha qualquer dúvida sobre o que lhe compete fazer, não deixa de evidenciar os dilemas que o percorrem. Diz-se do lado da justiça - e confirmam-no os seus actos, daí ser feito líder pelos desapossados -, mas a destruição do saber que são os livros não a pode conceber, menos ainda suportar. Por isso vai pô-los a salvo da sanha destruidora daqueles que liderou na luta contra a opressão do mosteiro, o que contém algo de tragicamente irónico: "Eu, que mais do que ninguém achava que o mundo acelerava para que cada um fosse mais gente, também julgo que o mundo fica incompleto sem o seu passado." (p. 104)Na sua busca de justiça, frei Elias é, até de ele se autonomizar, guiado por um padre, Rufino de Alcobaça, que se opõe a D. Abade, que governa o mosteiro. Do lado de D. Abade está frei Mauro dos Alvados, Celeireiro dos Portos, inopinado protector de Angelina Góis, mãe de Etelvina e tornada mãe de Elias. Angelina foi resgatada a Lisboa e ao convivío com William Beckford, o Inglês, e instalada no conforto e na solidão, para os lados de Valado, não fora a amizade atenta da judia Mafalda Ortiz, unida por negócios ao Celeireiro dos Portos. De notar que William Beckford, observador sagaz e relator minucioso de um certo Portugal setecentista, não é único personagem por assim dizer real que se mistura com os inventados. No termo do romance há um sucinto, mas significativo encontro entre frei Elias e Alexandre Herculano e ambos partem para Lisboa. No final estão a salvo os textos que permitem fazer a História - embora ela não se esgote neste tipo de fontes -, triunfa o ponto de vista de Elias, e decerto o do autor, abundando na obra inúmeras reflexões sobre a verdade histórica, sobre quem a consegue impor, o papel da ideologia, o poder e a condição humana. Ora, semelhantes reflexões saltam claramente as balizas temporais dentro das quais evolui a trama romanesca e tornam-se candentes. Ontem, como hoje, a versão da História que vinga é a dos vencedores: "Só ficam os que escreveram a conformidade de quem domina (...) Os outros, os que não escreveram de acordo com o pensamento desejado, vão-se evitando, até que a bruma do tempo os esquece." (p. 208) "O mundo, esse, renova os seus vícios em roupagem de cada época (...) mudarão os actores. O teatro é o mesmo." (p. 192) Fica-nos a leitura do monge Elias - o céptico sábio.