Vá para fora cá dentro
A Itália e Suíça de Franz Liszt e a Europa Barroca das Suites de Bach são a proposta fascinante do Festival de Mafra para este fim de semana.
A programação do VI Festival Internacional de Música de Mafra para os dias 19 e 20 apresenta dois grandes intérpretes da actualidade numa verdadeira maratona por algum do repertório mais aliciante dos seus instrumentos. Numa co-produção com o Festival Internacional de Piano de La Roque d'Anthéron o super-premiado Nicholas Angelich oferece a integral dos 'Anos de Peregrinação' do compositor Franz Liszt em três recitais. Jean-Guihen Queyras interpreta, em dois concertos, as 'Seis suites para violoncelo solo' de Johann Sebastian Bach. Como escolher entre tão deliciosos programas seria não só difícil como penoso, os horários do Festival convidam o melómano a ficar em Mafra para um fim de semana musical.Da mesma forma que um poeta descreve com palavras o murmúrio do mar ou um pintor retrata as cores de um sentimento, um compositor pode transformar em música a história de um herói ou os sons da natureza. Este tipo de narrativa musical viu em Franz Liszt o seu maior expoente. É preciso dizer que a música programática já tinha sido abordada no passado, nomeadamente nos instrumentos de tecla. Se à ideia nos vem o 'Capricho para a despedida do querido irmão' de Bach, certo é que os recursos orquestrais do piano de Liszt são de uma envergadura completamente diferente.Os 'Anos de Peregrinação' resultam de uma compilação de peças escritas em viagem. O primeiro ano, em companhia da Condessa d'Algout, retrata a Suíça nos anos de 1835-36. 'La Chapelle de Guillaume Tell', sob a insígnia do "Um por todos, todos por um", conta as aventuras do herói por entre os trompetes que ecoam no vale. 'Au lac de Wallenstadt', segundo a Condessa, terá sido escrita mesmo junto ao lago. No repertório dos virtuossos ficou 'Au bord d'une source' que por entre o subtil trocar das mãos retrata o som da água de forma magistral. 'Vallée d'Obermann' resultou de uma experiência emocional mais intensa e levou Liszt a escrever que "todo o desejo e profundo tormento que o coração pode suportar, eu vivi e sofri nessa noite memorável." 'Les cloches de Genève' foi dedicada à filha mais velha, Blandine, que aí nasceu e a música não deixa dúvidas quanto ao título.O segundo ano, em Itália, muda genialmente a fonte de inspiração. A cultura dos grandes autores e artistas plásticos italianos causou uma forte impressão em Liszt que a transcreveu em música. 'Spozalizio' resulta do quadro 'O casamento da Virgem' de Raphael, 'Il Penseroso' da escultura de Michelangelo. Os três 'Sonetos de Petrarca' viram várias versões, a primeira das quais para canto e piano. Na sua transcrição para piano representam a mestria inigualável com que Liszt executava essa arte. 'Après une lecture de Dante' é a peça mais ambiciosa de toda a colecção e, apesar de Liszt ser conhecedor dos textos de Dante, tem origem no poema homónimo de Victor Hugo.Tendo sido escrito no final da sua vida, o 3º ano é o menos tocado. Dedicado a Itália, tem três peças inspiradas nos jardins de Villa D'Este, local a que se deslocava todos os anos. De todas, 'Les jeux d'eau' é a mais famosa tendo reflectido a sua influência nos impressionistas franceses. Em todas estas composições tardias Liszt embarca por caminhos harmónicos inovadores, mostrando contínua inspiração revolucionária.Bach foi um renovador da arte instrumental. Se no piano o alcance das suas inovações não deixam dúvidas, nomeadamente com o 'Cravo bem temperado', ao violino e violoncelo Bach deu a capacidade de criar polifonia. Contrária à natureza de instrumentos por natureza melódicos, a polifonia consiste na simultaneidade de várias vozes. Recorrendo a mudanças rápidas de registo, variações entre graves e agudos, Bach criou então a ilusão da polifonia.A suite barroca compila uma série de danças contrastantes que partilham entre si a mesma tonalidade. Nas seis que vamos ouvir, os Prelúdios são escritos em livre estilo ao contrário das danças, que a regras obedecem. As Allemandes são geralmente rápidas no ritmo mas calmas no carácter, por vezes melancólico. A Sarabanda é sempre nobre e lenta gozando das ressonâncias graves. As Courantes são de ritmo vertiginoso com uma leve acentuação no primeiro tempo de ritmo ternário. Os Minuetos deverão ser moderados, para dar tempo a uma vénia ao sexo oposto. As Bourrée são mais raras e reflectem a influência do folclore francês. As Gavotte, nem sempre fáceis de reconhecer, podem variar consideravelmente em estilo ao contrário das inequívocas Gigue que terminam velozmente todas as Suites.