O negócio dele é afro-beat
Tony Allen há muito que não é apenas o baterista de Fela Kuti. Os seus discos falam por si. O novo "Homecookin'" também. Apesar disso, preferimos falar com o próprio.
É um lugar comum que a música nasceu em África. Tem sido sobretudo pelo regresso dos músicos americanos às raízes - começando pela ascendência esclavagista e continuando por uma prolífera descendência reflectida em toda a música negra norte-americana, do jazz ao hip-hop -, que a área de influência e o valor da música africana têm sido reconhecidos mundialmente. O advento da "world music" e a redescoberta da música autóctone, muitas vezes graças à europeização dos seus criadores (que o digam Cesária, Manu Dibango, Youssou N'Dour, Baaba Maal, Salif Keita, Mory Kanté, Ray Lema ou Khaled, só para citar alguns dos mais conhecidos), também contribuiu para a libertação das grilhetas do bilhete postal. Para a afirmação da pujança musical africana, foi essencial a penetração nos circuitos mundiais do carisma, génio e música de Fela Kuti, e as propriedades virulentas do afro-beat. Mas quantas pessoas sabem quem foi Fela Kuti? Provavelmente mais do que as que já ouviram falar de Tony Allen e se cruzaram com o seu trabalho. Fela morreu em 1997 e, desde então, o afro-beat tem sido redescoberto, adquirindo uma influência cada vez maior na música electrónica e de dança contemporâneas. Parte da responsabilidade por esse interesse deve ser atribuído ao trabalho de pesquisa proporcionado pelas novas gerações de "samplistas". A outra, maior, a Tony Allen, o baterista de Fela, o homem que criava os padrões de bateria (o "beat" do afro) que propulsionavam (e proporcionavam?) o génio e a visão de Fela. Há quem considere Allen o pai do afro-beat, mas é o próprio que nega a paternidade exclusiva nesta conversa com o Y a propósito do lançamento do seu último álbum de originais, "Homecookin'". "Somos os dois os fundadores. Ele compunha e cantava, mas sem os meus 'beats' não lhe seria possível compor como fazia". Segundo a informação disponibilizada no magro mas excelente "inlay" de "Homecookin'", Fela escrevia a música para os elementos dos Africa 70, excepto para o nosso interlocutor. "Ele tentava escrever para mim, mas ambos sabíamos que não soava tão bem". Tony acrescenta nas declarações citadas: "Fela dizia que eu soava como quatro bateristas". libertação. Curiosamente, ainda hoje o fantasma de Fela parece assombrá-lo - até porque é impossível falar com Tony Allen sem referir "o dito cujo"- e o processo de libertação da assombração só entrou em ritmo de cruzeiro depois da morte do mestre. Tony trabalhou com Fela entre 1964 e 1979, altura em que se fartou de ser uma figura de segunda linha, ou, como o próprio diz, mais diplomaticamente: "Tínhamos objectivos diferentes, e os tempos eram outros. Nessa altura era tempo de eu tocar e ele cantar. Ele estava à frente e eu atrás. Depois foi tempo de progredir, para outro sítio. Gostei desses tempos, e também gosto dos de hoje". Por esta altura da conversa, já tínhamos quebrado o gelo, depois de um início de conversa atribulado. Depois de milhares de "you know what i mean?", proferidos num tom ameaçador do outro lado do telefone (seria Soprano este Tony?), conseguimos convencer o homem que sim, que percebíamos. "Fusion" foi outra palavra repetida até à exaustão." A primeira vez que surgiu foi a propósito dos desvios pela soul e hip-hop. "Tudo é afro-beat. 'Fusion'. Toco diferentes padrões, mas não sei tocar nada que não seja afro-beat. No passado fiz coisas demasiado direccionadas, desta vez decidi chegar a toda a gente. É preciso modernizar o afro-beat, procurando sempre novas direcções. Quero que no meu disco todos encontrem pelo menos um tema de que gostem, especialmente as novas gerações. São eles que compram os discos." Além da maior acessibilidade de "Homecookin'"- especialmente se o compararmos com os tempos do projecto NEPA (Never Expect Power Always) ou com os recentes álbuns como Psycho On The Bus e, em nome próprio, "Black Voices" -, existe também uma lista de convidados que apontam no sentido do rejuvenescimento. O mais conhecido é Damon Albarn, os mais interventivos são Ty e os produtores Unsung Heroes. "Não os escolhi premeditadamente. Escrevi a minha música, decidi os temas que iria cantar e aqueles em que teria convidados. Convidados em geral, do hip-hop, r'n'b, soul. A minha intenção não era andar à procura de estrelas [diz a palavra com algum desprezo, como se abrisse os olhos de espanto]. Procurava apenas alguém que se encaixasse. Os Unsung Heroes vieram do Allenko Brotherhood Ensemble Remix [um álbum que reuniu vários artistas da cena de dança que trabalharam a partir de ritmos de bateria fornecidos por Allen] e eles conheciam o Ty e o Damon. Quando ouvi o Ty disse logo: 'that's my man'. O Damon era alguém que por acaso sempre me admirou, cantou sobre mim 'Tony Allen makes me dance' ['Music Is My Radar' do 'best of' dos Blur de 2000]. Quando me falaram nele eu disse que não me importava. Seja lá quem for, o que preciso é de fusão." encontros imediatos. E é coisa que não falta neste "cozinhado caseiro". Na canção de abertura, o ubíquo Albarn transporta consigo toda a carga do seu passado pop e acrescenta-lhe as influências dos tempos mais recentes. Não destoa, antes pelo contrário. Os temas que têm Ty como protagonista são fabulosos e pérolas de hip-hop mestiço em simbiose perfeita com o afro-beat e a voz de Allen. Eska e a insólita dupla Mary & Norman encaixam na música de Tony Allen com a naturalidade de um passeio pela soul e o à vontade de quem nunca fez outra coisa na vida. Depois há (mais) afro-beat aparentemente dócil e domado que liberta energia pura, ousadia e imaginação, em encontros imediatos que vão do jazz ao rock, refulgindo entre arranjos de cordas e metais oleados. A música cresce a cada audição. Uma complexidade simples, que se descobre enquanto se dança ou divaga. Ritmo, melodia e harmonia em equilíbrio perfeito. Com letras que nos fazem sorrir e pensar, incomodam e põem o dedo na ferida, do mundo ou do quotidiano. Diz-nos Tony Allen que não escreve nada. Vai para estúdio e agarra um motivo, uma ideia, uma palavra que esvoaça com a trepidação da bateria. Depois, inventa, improvisa, diz o que pensa. Acrescenta que cantar não é o seu ofício e que o seu "drumming" é tão complexo que teve que trabalhar muito para conseguir tocar e cantar ao mesmo tempo, o que, naturalmente, deixa o canto para segundo plano. Quer é tocar, mas também vender discos e ter "os bolsos felizes". Foi por isso que trocou Lagos e a Nigéria pela Europa, "para fazer negócio"."Por que razão é que ficaria no meu país, onde a vida nocturna já não existe? Não vale a pena. É preciso mudar para um sítio onde se possa trabalhar. África hoje está uma confusão." Apesar das constantes referências à contabilidade, a música continua a estar primeiro. A dele e a dos outros. Aponta Art Blakey, Max Roach, Elvin Jones ou Tony Williams como ídolos e responsáveis pela sua dedicação à bateria. Fala dos Daktaris e Antibalas com orgulho e aponta-os como exemplo da disseminação do afro-beat ao fim de 30 anos de luta e cinco de "hype". Uma vida dedicada à música, com um silêncio discográfico propositado entre 1989 e 1999. Pelos melhores motivos. "Estava cansado. De cada vez que gravava um disco não gostava. Era sempre mal produzido. Quando isso acontece, é um desperdício. Decidi parar. Precisava de tocar ao vivo, recuperar a minha forma, esquecer os discos por uns tempos. Nesse período toquei com outras pessoas e trabalhei como músico de sessão."