A Força do Sexo Fraco

Com um elenco quase exclusivamente constituído por mulheres, "Oito Mulheres" cedo anuncia os seus próprios mecanismos de citação e de caução cinéfila.

A primeira matriz óbvia e confessa é "As Mulheres" (1939) de George Cukor, mítico filme centrado no universo feminino, só com actrizes, ainda que o principal assunto de conversa, de disputa e de bisbilhotice, seja o sexo oposto. Se dúvidas houvesse, lá estava o genérico em cada uma das estrelas é associada a uma flor, tal como em "The Women" aparece ilustrada por um animal. Por outro lado, os conhecedores da obra de Cukor, não deixarão de recordar que outro dos seus filmes, "My Fair Lady", possui famoso genérico floral.

O primeiro "travelling", no filme de Ozon, sobre uma paisagem invernosa e uma casa cercada pela neve fecha sobre um veadinho (ou uma corça?), remetendo, também de forma evidente, para o final (e não só) de "O Que o Céu Permite" (1956), o melodrama de Douglas Sirk, em que Jane Wyman, uma matrona de classe média alta, se apaixona contra tudo e contra todos pelo jardineiro Rock Hudson, rapagão muito mais jovem do que ela. Os que estiverem tentados a dizer que não passa de uma coincidência animal, atentem no chapéu que Virginie Ledoyen usa na primeira sequência, a da sua chegada a casa, que é igual ao de Gloria Talbott, que interpreta a filha de Jane Wyman no citado filme de Sirk. E antes das flores do genérico, já os cinéfilos mais inveterados haviam reconhecido no brilho dos cristais do lustre uma remissão para "Imitação da Vida" (1959), último filme americano de Sirk, cujo genérico se exibia sobre a acumulação de pedras preciosas.

Os dados ficam lançados, configurando a peça de teatro que se vai desenrolar perante os nossos olhos sob a égide dos dois modelos: Cukor, de origem húngara, muitas vezes designado, contra a sua própria vontade, como o cineasta das mulheres, encenador, importado da Broadway nos inícios do sonoro, e o realizador que mais incorpora a noção da teatralidade e do fingimento nas imitações de vida feita cinema; em complemento, o germânico Detlef Sierck, encenador de Shakespeare e Brecht, mestre do melodrama fílmico e do "women's picture" e retratista perfeito dos conturbados e "coloridos" anos 50.

O que Ozon faz é reverter estas duas tradições afins e complementares para a transformação de um objecto que assume o claustrofóbico "huis-clos" de um palco, circunscrito ao cenário de uma casa, apondo-lhe a mais-valia de oito actrizes carismáticas, encarnando a força do feminino. Porque opta por um passado recente, os sacrossantos "fifties", não resiste ao "kitsch" do guarda-roupa e dos adereços; porque traça tangentes com o policial brinca com os resquícios do "film noir"; porque quer fazer um filme musical junta à Deneuve e à Darrieux, vindas dos "em cantamentos" de Jacques Demy, outras imagens de mulher, que carregam consigo os sonhos e sombras do cinema francês, e "obriga-as" a cantar versões de grandes sucessos de canções mais ou menos "pop".

a elegância francesa. Não andam longe os universos dos outros "cineastas das mulheres": o mundo sadomasoquista do Fassbinder ("discípulo" de Sirk) de "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant", o "camp" irrisório e trágico de Pedro Almodóvar e até o Ingmar Bergman tragicómico de "Sorrisos de uma Noite de Verão" e sobretudo de "A Força do Sexo Fraco". O que é inseparável deste projecto é, no entanto, não uma certa dureza e atrevimento, subjacentes às experiências mais ou menos marginais de Almodóvar ou Fassbinder, mas uma elegância muito francesa, a capacidade para reunir todos os fios da intriga com a graça do melhor "vaudeville" e a leveza borbulhante do champagne. Defeito? Não, feitio e inconfundível imagem de marca.

Por isso, a Deneuve e Fanny Ardant trocam entre si diálogos que parecem glosar os de filmes de Truffaut, de que ambas foram intérpretes, numa abstracção impossível de um filme que nunca existiu que as reunisse a ambas. Por isso o esteio de toda esta parada de estrelas passa pelo "métier" e pelo talento de "comédienne" da Darrieux, mais à vontade que todas as outras nos jogos de palavras e de conceitos, nos preciosismos de tom de que o filme se constrói. Por isso, ainda, se acrescenta, em fotografia, a actriz que faltava ao "bouquet", Romy Schneider, ícone do cinema europeu desde os anos 50, a quem "Tudo sobre a Minha Mãe" de Almodóvar era também dedicado.

Por outro lado, se a criadinha de Emmanuelle Béart convoca a de Jeanne Moreau de "O Diário de uma Criada de Quarto" de Buñuel, não deixa de evocar a criadinha de Bibi Andersson nos "Sorrisos..." de Bergman. E esta rede de referências, de vasos comunicantes, não se esgota aqui: o misterioso retrato inserido da Béart cita os clássicos do gótico e do "noir", de "Rebecca" a "Laura"; a memória de Hitchcock subsiste em boa parte da banda sonora, "pastiche" de Bernard Herrman (há também ecos de música de melodrama sirkiano), o lustre inicial não pode deixar de recordar o plano de "Intriga em Família", o Hitchcock derradeiro, em que o diamante roubado é detectado pela câmara, oculto entre os cristais. Querem mais citações? Reparem como a coreografia geométrica das estrelas copia cenas famosas de musicais, por exemplo, "Não Há Como a Nossa Casa", de Minnelli, mais um filme de mulheres, com a Garland a capitanear.

Não se infira, porém, que "8 Mulheres" se esgota neste emaranhado. O pseudo-teatro que se exibe - no final as actrizes dão as mãos como que para fazerem uma reverência colectiva ao público, nunca chegando a esse acto de agradecimento - aposta na dimensão profunda do divertimento. Tudo é aparência e se desfaz com a ligeireza de Mozart ou a leviandade de uma comédia de costumes de Oscar Wilde.

E o mais extraordinário é que o peso da cultura e do saber fílmico acumulados nunca impede a modernidade do acto de desmistificar as relações humanas no coração do mais irrisório desspero. Como em Almodóvar ficam o incesto, a homossexualidade, a abjecção do humano, a solidão ou a impossibilidade do amor como temas larvares. Não nos deixemos enganar, se Ozon recobre tudo do manto diáfano da fantasia, próximo de uma paródia da "soap opera" (lembram-se da televisiva "Soap"?), para dar uma aparência de farsa e nos fazer rir a bandeiras despregadas. Mas atente-se no modo como se filma "Pour ne pas Vivre Seul" de Dalida na voz da criada negra, ou no sabor agridoce da magnífica interpretação da Darrieux para o poema de Aragon, musicado por Léo Férré, "Il n'y a pas d'amour heureux". O divertimento apresenta-se com os seus próprios antídotos e anuncia a força do sexo "fraco", em que as actrizes dizem o mundo de ilusões num palco de estúdio.

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