Grande Reportagem - a informação sem "diktats"
2 de Outubro de 1984. À semelhança de muitos portugueses, a equipa de Grande Reportagem (GR) está reunida em frente ao televisor, para assistir à exibição do trabalho de José Manuel Barata-Feyo nos territórios angolanos controlados pela UNITA. A reportagem, que cinco meses antes fora proibida pela administração escolhida pelo Governo do Bloco Central e provocara o fim do programa, era finalmente transmitida na RTP1.Para os protagonistas de GR, este terá sido, face às circunstâncias, o melhor canto do cisne possível para um programa que, de 1981 a 1984, viveu fiel a um compromisso: encurtar a distância e aclarar a percepção dos portugueses face aos problemas nacionais e estrangeiros.A GR esbateu a condicionante geográfica a níveis inéditos na RTP. Passou a ser frequente o envio de repórteres para destinos como a Nicarágua, Índia ou Médio Oriente. O programa cobriu a guerra civil no Chade, esteve com os guerrilheiros da Frente Polisário, percorreu a ilha de Moçambique. Pela primeira vez, os ecos de conflitos armados, costumes e dinâmicas culturais passaram a chegar semanalmente e em horário nobre pela "mão" de um repórter português. "Achei que a época do 'orgulhosamente sós' já tinha acabado. Portugal era dos poucos países europeus que não tinha um programa de grande reportagem", conta José Manuel Barata-Feyo, o jornalista que avançou com o projecto.Também em Portugal, a GR tornou próximo o que parecia longínquo. Avivou memórias e revisitou assuntos, alguns deles depositados no baú do esquecimento. "Desenterrou" Timor-Leste para a ordem do dia, apontando responsabilidades na descolonização portuguesa e mostrando os efeitos do jugo indonésio no território. Recuperou o caso Camarate, utilizando meios nunca antes vistos para tentar apurar o que levou à queda do Cessna, onde seguia, entre outros, o primeiro-ministro Sá Carneiro. Fenómenos do quotidiano ganharam igualmente visibilidade jornalística: o divórcio, a prostituição, o vício do jogo, o isolamento acrescido do Nordeste transmontano devido ao desaparecimento dos comboios de via estreita, a droga, as doenças sexualmente transmitidas e os esforços que eram feitos pelas mulheres para ficarem bonitas foram temas de reportagem. "Nessa altura, sentia-se que as pessoas eram alimentadas por uma informação sem continuidade e enquadramento. Foi isso que tentámos contrariar", refere Barata-Feyo, que, juntamente com Artur Albarran e Fernanda Garcia, formou a equipa inicial de Grande Reportagem. Depois foram chegando, entre outros, Seruca Salgado, Miguel Sousa Tavares, Joaquim Furtado, Carlos Pinto Coelho e Rui Araújo.Para este último, pertencer à equipa da GR significou fazer jornalismo de investigação: perceber as causas para explicar as consequências, de modo a apresentar o assunto em toda a sua extensão. "Éramos bastante atrevidos para a época, mas também nos tornámos especialistas a resistir às pressões", recorda Artur Albarran. "Era um programa que escapava aos 'diktats' político-partidários, não se identificando com nenhum movimento ideológico", refere Barata-Feyo. Por isso, sustenta, "a Grande Reportagem era igual a um 'Grande Problema' para a RTP, como depois se viu". O programa era apresentado por dois "pivot": um introduzia o tema da reportagem, o outro, o seu autor, sintetizava em poucos minutos as semanas ou meses de investigação que tinham resultado no produto final de 52 minutos que seria de seguida transmitido."Era unanimemente considerado o programa mais visto da TV portuguesa", refere Barata-Feyo, para quem os portugueses "se sentiam cidadãos do mundo com a GR". Missão cumprida para quem, segundo o chefe de redacção, cumpria o papel de "advogado do cidadão". O trabalho foi reconhecido com centenas de cartas e abaixo-assinados que Barata-Feyo guarda ainda hoje. Em "mais de 30 dossiers", garante o próprio. A repercussão foi visível também na imprensa. Albarran recorda que o tema de reportagem "era referido nos jornais antes de passar no ecrã". O que contrasta com a "desconfiança inicial" que, segundo Barata-Feyo, a imprensa dedicou à GR, mas que depressa se esbateu: "Fizemos alguns programas com duas reportagens, uma estrangeira e outra feita por nós. Foi aí que viram que nós não ficávamos nada atrás do que os outros faziam." O mesmo acharam os júris que galardoaram o programa com prémios internacionais, os primeiros da TV portuguesa. Para Rui Araújo, foi o resultado "do grande capital de competência e a partilha de valores essenciais, como a democracia, o rigor e o profissionalismo, que existia entre os jornalistas". Tudo isso aliado a um "grande espírito de equipa e entreajuda", que se traduziram "num programa incómodo, mas sério e de grande popularidade". Popularidade que, para Barata-Feyo, se manteve mesmo com várias mudanças de horário que visariam, afirma, "afastar os espectadores e acabar com o programa". "Mas não conseguiram."O tempo viria a confirmar o contrário. O fim acontece em Maio de 1984, com o adiamento sucessivo, por parte da administração nomeada pelo governo do Bloco Central, da exibição da reportagem realizada por Barata-Feyo nos territórios controlados pela UNITA, entre Dezembro de 1983 e Fevereiro de 1984. O conselho de gerência - do qual viria a demitir-se o administrador Cerqueira Correia, em desacordo com a decisão dos seus pares - sustenta a medida com indícios de irregularidades no financiamento da reportagem e com atrasos no processo de edição e montagem. A justificação é desmentida pelo director de informação, Fialho de Oliveira, que garante que a reportagem está pronta para emitir. Mas não é.Os jornalistas erguem-se em protesto. Para eles, a proibição é uma cedência do Ministério dos Negócios Estrangeiros às pressões do Governo angolano, bem como aos interesses de empresas portuguesas com negócios na ex-colónia. Num artigo editado no PÚBLICO em 2000 (17-03-00), Barata-Feyo refere as empresas do almirante Rosa Coutinho e do brigadeiro Eurico Corvacho e apresenta-as como "fornecedoras de armas e mercenários ao MPLA".Barata-Feyo é suspenso e proibido de entrar nas instalações da RTP durante 19 meses. A redacção é desmantelada e o programa encerrado. Mas o assunto continua vivo na imprensa. A maioria dos jornais insurge-se contra a "censura" do conselho de gerência da RTP, mas também outros, como "O Diário" (afecto ao PCP), subscrevem a não transmissão da reportagem, por esta ser "uma grosseira provocação contra o Estado e o povo amigos da República Popular de Angola". Na sequência de uma queixa de jornalistas da RTP contra a empresa no Conselho de Comunicação Social, este órgão da Assembleia da República acabaria por ordenar a transmissão, seis meses após a sua interdição. Para Barata-Feyo, esta decisão "simboliza uma das raras vitórias do jornalismo sobre o poder político". Que, mesmo assim, não evitou o fim do programa. Os protagonistas ouvidos pelo PÚBLICO recordam com saudade a experiência vivida com a Grande Reportagem. Para alguns, lembrar o passado é uma crítica, implícita, ao presente televisivo. "Difundimos uma cultura de cidadania através do jornalismo, que ninguém hoje faz nas televisões, onde programas de informação são transformados em meros 'reality-shows'", refere Rui Araújo. "Não dávamos prémios, carros ou mulheres a despirem-se. Dávamos jornalismo", remata Barata-Feyo, que acredita que com a Grande Reportagem se atingiu uma espécie de moral da história: "Quando dão liberdade aos repórteres da RTP para trabalhar, nós chegamos lá."