O.K., põe-me K.O.
Os Cassius estão de regresso. Longe vão os tempos dos Motorbass e La Funk Mob. O músculo substituiu a magia. Zdar e Boombass quiseram renovar a sua música. As boas intenções não foram suficientes, mas ainda não é altura de mandar a toalha ao tapete.
Quando se grava um disco brilhante, uma obra-prima, um modelo de referência, o que é que se faz a seguir? Terá sido esta a questão que atormentou os Motorbass depois de "Pansoul"? Provavelmente. Etienne de Crécy ainda fabricou o excelente "Superdiscount" mas quando chegou a altura de avançar em nome próprio ficou-se por "Tempovision", disco menor. Philippe Zdar optou por continuar a desenvolver projectos com base na amizade e voltou à cena com Hubert Blanc-Francard (mais conhecido como Boombass), fundando os Cassius. A magia que a dupla demonstrara na primeira metade dos anos 90 na Mo'Wax, respondendo pelo nome de La Funk Mob, foi transformada em músculo nas pistas de dança. Se a estes factos juntarmos a produção de Boombass do seminal "Qui Seme Le Vent Recolte Le Tempo", o álbum de estreia de MC Solar, há motivos mais do que suficientes para nos voltarmos a interrogar sobre os insondáveis mistérios da criação musical. Sobretudo, porque já não se trata do estafado lugar-comum do fantasma do segundo álbum. Não se podem fazer discos eternos todos os dias. Mas é lícito esperar voltar a ser deslumbrado por quem já nos deslumbrou. Nenhum dos elementos deste triângulo fundamental na explosão da música francesa no final do século passado parece capaz de vir a consegui-lo nos tempos mais próximos. O novo álbum de originais dos Cassius, "Au Rêve", é um disco estranho e diletante. Tem pontos de contacto com o universo dos Daft Punk em "Discovery" mas não chafurda nos anos 80 nem exacerba pulsões narcisistas. Propõe paisagens electrónicas em toada ambientalista a lembrar os Air e rasga as pistas de dança com um composto explosivo de house negra e rock evocativo dos Rinôcérôse (mas também de Jimi Hendrix). No meio do pastiche, há divagações várias, do tecno aos blues. É um disco a roçar a esquizofrenia, que se perde no desejo de diferença e na tentativa de a alcançar. Quando é o lado físico e a funcionalidade que detêm o protagonismo, então, nas canções em que as guitarras abrem as goelas (ou avançam num registo funky bem balanceado) e as batidas fazem estremecer as colunas, servindo de tapete ao desfile do talento vocal de alguns convidados, o disco consegue levar os ouvintes até perto das cordas, apesar de nunca concretizar o K.O. Quando a tentativa é renovar, deparamo-nos com um deserto de ideias. Sobram intenções, falta imaginação. Talvez o confirmado regresso dos Motorbass coloque um ponto final no assunto. Para o bem ou para o mal. Em entrevista ao Y, Zdar assumiu a opção pela diversificação sonora, a necessidade de fazer "something completely different", e também as ligações ao último disco de Bangalter e Homem-Christo. "O nosso disco pode ser entendido como uma resposta aos Daft Punk. Ouvimos o 'Discovery' enquanto estávamos a gravar, e isso apenas reforçou a nossa convicção de que estávamos no bom caminho. Mas faríamos este álbum tal como está, de qualquer forma. Foi uma boa escala de comparação. A nossa vontade de mudança, também comum aos Daft Punk ou aos Air, deve-se ao respeito que temos pela música e por dar às pessoas algo de diferente." Já as perspectivas em relação ao património dos anos 80 e à utilização da tecnologia são diferentes neste minicombate com os Daft Punk. Zdar afirma não ter essas referências e conclui que os "oitentas" "foram uma merda". Ainda assim, é fã do hip-hop americano dessa década, especialmente aquele que assentava sobre a escola "kraftwerkiana". Para já, vamos às máquinas e às guitarras. french quê? "Não estamos cansados de usar máquinas, mas estamos fartos de 'samples' e 'loops'. Não há nenhum interesse em continuar a fazê-los. Já houve demasiada merda durante esses 'lifestyle years'. Mudámos a nossa direcção musical e foi fantástico sermos nós a fazer tudo, a nossa música. Foi a melhor altura da minha vida musical." Neste processo de composição e gravação "sempre a rolar", participaram amigos como M, artista do pop de visual inimitável em ascensão na cena francesa, convidados com quem sempre desejaram trabalhar - a diva da house Jocelyn Brown e o rapper Ghostface Killah - e mais alguns nomes que manifestaram interesse em juntar-se aos Cassius, como Steve Edwards ou Leroy Burgess. "Foi um prazer trabalhar com a Jocelyn. Apesar do seu estatuto, esteve sempre disponível em estúdio até às quatro da manhã. A canção em que participa, 'I'm a woman', foi gravada há dois anos, quando estávamos a promover o disco anterior, o '1999'. Foi a partir daí que ficámos agarrados às canções e quisemos fazer mais. As canções funcionam como uma droga. Com o Steve, foi diferente. Veio ter connosco, em Istambul, a perguntar se queríamos fazer algo em conjunto. 'OK, depois contactamos-te.' Mas foi ele que voltou à carga, e percebemos que estava mesmo determinado. Mandámos-lhe um bilhete de avião e fizemos a canção ["The sound of violence", o novo single]." Aparentemente, não houve grande planeamento. O nosso interlocutor confessa que não pensa demasiado na música que faz. Apenas a faz e sente. E quando o resultado final fica aquém das expectativas, envia-a para o caixote do lixo. Recusa qualquer intelectualidade no que faz, da mesma forma que não sente nenhuma responsabilidade perante o "french touch". "É uma questão de 'timing'. A coisa mais relevante em relação ao meu trabalho nos Motorbass foi o facto de termos lançado um álbum ["Pansoul", 1996] numa altura em que ninguém o estava a fazer. De resto, não me sinto pioneiro ou guru. Nem sequer me sinto demasiado francês na música que faço. A nossa inspiração e modelos são 95 por cento americanos. O fenómeno do 'french touch' não me interessa." Sente-se um certo distanciamento em relação à indústria musical, ao mercado, aos media. Uma situação típica de "o inferno são os outros". Já tínhamos falado sobre o electro e a opinião de Zdar era liminar. "É bom quando é futurista. Gosto de pós-modernismo e odeio tudo quanto é retro. É apenas moda." Restava saber quais os motivos e o alcance da nuvem cinzenta que ensombra os Cassius e o nosso interlocutor. E também as expectativas em relação a "Au Rêve". "Não espero nada, nem me preocupo com isso. A minha expectativa era acabar o disco e isso já está feito. Agora, é com a Virgin. Nós tivemos um single que foi nº 1. Somos mais ou menos conhecidos, mas a nossa música não toca muito na rádio. Não percebo por quê. Quando oiço a rádio, é uma loucura. É 99 por cento de esterco. Por quê? O 'top' francês está cheio de velhos cantores de músicas açucaradas e tipos que estiveram no Big Brother e agora gravam discos. Ficaram famosos a fazer figuras tristes e agora estão na música pelo dinheiro. É por isso que me quero afastar do aspecto comercial. A questão é simples. Ou se está do lado pobre da música ou do lado rico. E a França talvez esteja na parte pobre. Temos alguma boa imprensa, mas já conheci muitos jornalistas ligados à electrónica pelos quais não tenho a mínima consideração. Se falarmos com eles durante uma hora percebemos que não sabem nada de música. As más críticas que temos tido em revistas especializadas não me importam, exactamente por isso. As pessoas que estão ligadas à música electrónica não percebem este disco. Chegaram a perguntar-me por que é que tínhamos usado guitarras, que não tínhamos esse direito!" Apesar de tudo, Zdar está confiante. "Muita gente 'very trendy' fala mal de nós, mas o verdadeiro público gosta do álbum. Veremos. A única coisa que sei é que os Cassius não são uma moda." E qual será o verdadeiro público? O mesmo do Big Brother ou o "very trendy"?