O dom das lágrimas
destaque: É mais do que tempo de ir buscar aos armários as roupas de Inverno e de me despedir de tão triste Verão. Mas não dizem para aí que "o tempo anda maluco"? Desculpem-me. Tão cedo não vos falo em lágrimas. Mas peço-me e peço-vos o dom delas1 - Passou Julho, passou Agosto, passou Setembro. Usos e costumes impõem para os meses estivais a possível leveza, nos trajes e nos modos. Inquéritos e cinhas.Assim sendo, quem me convidou, e quem me leu, pode ter pensado que bicho me mordeu para um tom acentuadamente tão carregado e para temas costumeiramente mais outonais do que veraneantes. Há um tempo para chorar e há um tempo para rir? Haver há e eu até gosto de rituais. Mas Cronos não é o único programador. Se o fosse, Zeus nunca teria chegado a grande e tinha sido mais um dos filhos devorados. Há sempre outros deuses, capazes de trocar crianças por pedras quando menos se espera, quando menos se espera. Como bem sabe quem serviu imprevisíveis senhores por muitos anos, "em Fortuna tudo são mudanças"; "em Amor não há senão enganos".2 - Mas estava eu a acabar memórias de Salzburgo e a ganhar forças para mudar de tonalidade, veio-me parar às mãos um livrinho bem bonito, daquela colecção de que gosto tanto, chamada "Gato Maltês". Foi uma das muitas invenções de Manuel Hermínio Monteiro para a Assírio & Alvim e lá se publicaram preciosidades como o "Primeiro Livro de Urizen" de William Blake, os "Hinos à Noite" de Novalis, os "xix poemas" de e.e. cummings, "O Tempo Aprazado" de Ingeborg Bachmann, as "Elegias Amorosas" de John Donne ou "Esta É a Minha Carta ao Mundo" de Emily Dickinson.O livrinho que, agora, Manuel Rosa me pôs nas mãos - e que daqui tanto lhe agradeço - é uma antologia de orações da antiga liturgia cristã, escolhidas e traduzidas por José Tolentino Mendonça e Joaquim Félix de Carvalho. Tem na capa um pormenor (cabeça, busto e braço) da Madalena de Artemisia Gentileschi que está no Pitti (O que eu gosto desse quadro! O que eu gosto dessa Artemisia que tão tardamente reencontrei!) e chama-se "O Dom das Lágrimas". Tão mesmo consoante me era que não resisti a escolhê-lo para esta primeira crónica outonal, por ele transmudada em última crónica estival.É mais do que tempo de ir buscar aos armários as roupas de Inverno (pelo menos as de meia estação) e de me despedir de tão triste Verão. Mas não dizem para aí que a meteorologia mudou toda e que "o tempo anda maluco"? Desculpem-me. Tão cedo não vos falo em lágrimas. Mas peço-me e peço-vos o dom delas.3 - Paris, 1961. Apogeu da "nouvelle vague". E, depois de Truffaut, de Godard, de Chabrol, de Resnais, "toda a gente" falava de Jacques Demy, que, nesse ano, estreou a primeira longa-metragem: "Lola". Lola era Anouk Aimée, "celle qui rit à tout propos". Um dia, o pai da filha dela - a filha dela chamava-se Cécile - deixou-a para ir para a América, sem sequer saber que deixava tal filha dentro de tal mãe. Prometeu-lhe que voltava numa manhã de nevoeiro, rico e feliz. Mas, tirando Lola, que tinha uma fé do tamanho do riso dela, ninguém acreditava em tal regresso. Mas ele voltou mesmo, rico mesmo, feliz mesmo, "cowboy" branquíssimo num Cadillac ainda mais branco. Era o "happy end" levado ao cúmulo. As meninas do bar de Lola, as colegas de Lola, choravam de alegria, tanto e tão bem como alguns anos antes haviam chorado, numa primeira comunhão no campo, as meninas de Madeleine Renaud e da Maison Tellier no segundo episódio de "Le Plaisir" de Max Ophuls.Aliás, "Lola" era dedicado à memória de Max Ophuls, que tinha morrido em 1957. Como escreveu, num texto lindo de morrer, o Alberto Vaz da Silva, quando "Lola" se estreou em Portugal (1963), "as palavras fílmicas querem-se trocadas levemente como um copo de 'cognac' por um copo de água".Tão levemente se querem trocadas que este filme, que tinha o único "rallenti" genial que eu já vi em cinema (num carrossel, ao som do primeiro prelúdio do primeiro livro do Cravo Bem-Temperado de Bach) e que acabava no mais suave milagre ("Aqui estou"), tinha como epígrafe um provérbio chinês que diz: "Chora quem pode, ri quem quer."Se toda a gente consegue rir (embora não sejam muitos os que são capazes de rir bem, de rir a bandeiras despregadas), muita gente quer chorar e não pode. Aos (maus) actores põem-lhes glicerina. "Secaram-se-me as lágrimas" é uma expressão corrente em gente que se empederniu ou a que a vida empederniu, gente só capaz de envelhecer e nunca de mudar. Não acontece às crianças, mas é frequente nos adultos. É mais vulgar nos homens do que nas mulheres, talvez porque ouçamos dizer, desde a infância, que "um homem não chora" ou que "um homem nunca chora, nem que tenha as calças a arder". Ou então não é nada disso, mas o supremo argumento (que nunca vi citado) sobre a superioridade do sexo feminino. Se for assim, até isso se está a perder, porque reparei outro dia no título de um filme recente: "Mulheres Crescidas não Choram". Até onde pode ir a estupidez do feminismo.4 - José Tolentino Mendonça (um dos três grandes poetas portugueses, revelados depois do 25 de Abril) escreveu para esta antologia um espantoso prefácio chamado "A Sintaxe das Lágrimas", precedido por uma epígrafe de Celan: "... pelo rastro das lágrimas / aprende a viver..."Começa com uma oposição em que nunca tinha atentado. Se, na tradição bíblica, as lágrimas são frequentemente invocadas; se o próprio Cristo, segundo os evangelistas, por duas vezes chorou (quando Lázaro morreu e quando chegou a Jerusalém para a última Páscoa e para a Última Ceia), nas lágrimas mais misteriosas jamais derramadas; na cultura clássica, as lágrimas são apagadas e raras vezes choraram deuses ou heróis. José Tolentino evoca o passo da "Odisseia" em que Ulisses, ouvindo o canto do aedo sobre as próprias e passadas glórias dele, cobre a face "com um longo manto de púrpura" para que o não vissem chorar. Porque a emoção o podia trair e trair a sua identidade? O poeta fala-nos sobretudo da vergonha que sentiu que outros surpreendessem lágrimas de herói. Ésquilo (cito de memória) também não cantou o choro de Prometeu e Platão nunca referiu lágrimas de Sócrates. Chorar, chorou Orfeu, mas Orfeu era o poeta e aos poetas se consente o que a heróis ou sábios não convém. Mas o Filho do Homem chorou. Chorou também, por três vezes, o primeiro Papa, quando o galo cantou e percebeu quanto tinha renegado e traído. Séculos de tradições plásticas fizeram-nos ver as lágrimas da Virgem ou as do arrependimento de Madalena.José Tolentino evoca sobretudo a espiritualidade dos padres do deserto e dos místicos. Evagro, o Pôntico, que explicou a acédia como a dureza das almas que resistem às lágrimas, S. Gregório de Nazianza, S. Gregório de Nissa, o diácono Efrém. Fala de Orígenes e da "tristeza segundo Deus", "sede da alma", "húmido silêncio espiritual". "As lágrimas são "uma fala estimada", "uma chuva de ouro", "um alagado lençol de piedade que dança sobre o mundo". E recito ainda outra citação do poeta, esta de Cioran: "As lágrimas são aquilo que permite a alguém ser santo, depois de ter sido homem."Por isso, a partir dos séculos VIII e IX, através das chamadas "missas de Alcuíno", como aprendi com a erudita introdução de Joaquim Félix de Carvalho, surgiram, nos códices medievais, formulários de missas "pro petitione lacrimarum". Essas missas rezaram-se até ao Vaticano II, que acabou com elas, na reforma litúrgica que acabou com tantas outras coisas que nunca deviam ter acabado.5 - São belíssimas as orações da antologia, publicadas em latim e na tradução portuguesa.Transcrevo estas duas, que no livro levam os números XII e VII:Deus omnipotenteconsidera favorável estas oraçõese alaga nossos olhos com rios de lágrimasque apaguem as flamas dos incêndios merecidos(...) digna-te dar em abundâncialuz da inteligência verdadeira a estes submissos servoslágrimas aos olhoscontrição ao coraçãoaté que purificados do actual luto e da tristeza espiritualda morte eterna nos afastemos como de uma ruína