É a segunda longa-metragem de Mathieu Amalric, depois de um "Mange ta Soupe" que deu nalgumas vistas. Esse era um filme curiosíssimo, que se prestava às mais variadas interpretações e interrogações, a funcionar num registo próximo de algumas inspirações do burlesco clássico (retomadas com enorme sensibilidade e discreção), e Amalric servia-se dele para encenar, aparentemente, uma libertação do peso dos mais velhos, uma emancipação dos pais, representados por críticos literários e bibliotecários: para que a personagem de Amalric se mexesse nesse filme era preciso, literalmente, tirar os livros do caminho, encontrar um rumo pelo meio deles.
Percorrendo a biografia de Mathieu Amalric [ver texto ao lado] percebe-se facilmente até que ponto essa situação se pode colar, com maior ou menor ironia, à própria vida do actor/cineasta. Mas a dimensão simbólica também era importante: não se tratava de uma revolta, mas da consciência de que para encontrar uma identidade às vezes é preciso ver-se livre de algumas coisas herdadas. Essa dimensão permanece válida (e no limite "Mange Ta Soupe" era um filme sobre isso) quando aplicada à procura da identidade de Amalric como cineasta: encontrar o seu espaço na família, inscrever-se nela sem a renegar mas sem se diluir nela. Questão tão mais aguda quanto a família cinematográfica de Amalric é das que mais tradições e mais peso tem no cinema francês - e seria relativamente fácil estabelecer, através do seus dois filmes, uma genealogia que teria Jacques Rivette no lugar do avô e Jean-Claude Biette no lugar do pai, o que equivale ainda a uma série de tios e primos de respeito.
estranha em terra estranha. É claramente a essa família que pertence "O Estádio de Wimbledon". Quem não gostar da companhia escusa de ir ao engano. Curioso é que os livros voltem a servir de motor, e que desta vez se trate mesmo de uma adaptação de um romance (o livro homónimo do italiano Daniele del Giudice) que tem por tema, justamente, livros e escritores. Amalric, que herdou da família o gosto pelas "boutades", diz que escolheu o livro ao acaso numa biblioteca.
Mas também diz, num plano que já denota mais intenções deliberadas, que o que o fascinou foi a história subjacente ao romance: uma história de vampiros.
Daniele del Giudice era um engenheiro de 35 anos que decidiu escrever uma história sobre um candidato a escritor que partia em busca de um escritor que nunca escreveu nenhum livro. Alguma semelhança com a "démarche" de Amalric? É ainda ele quem nota a coincidência de, como Del Giudice, ter 35 anos quando começou a rodar o filme. Um filme, portanto, sobre a angústia da criação, sobre o peso das obras e dos legados, sobre a ténue fronteira entre o embuste e a genuinidade, sobre os confrontos interiores decorrentes de tudo isto?
É possível, e se calhar também era a isso que Amalric se referia quando disse que "O Estádio de Wimbledon" era uma coisa sobre travões - e a verdade é que na primeira sequência temos direito a uma longa e tecnicamente pormenorizada explicação sobre como funcionam os travões dos comboios.
Amalric alterou dois dados do romance, e dessas alterações tira imenso partido: mudou a nacionalidade do protagonista (que no livro era italiano) e o sexo (passa a ser uma mulher, interpretada por Jeanne Balibar - a actriz de "Sabe-se lá", de Rivette).
A primeira permite-lhe filmar o estrangeiro e a estranheza, adensando as características duma cidade, Trieste (cidade virgem de cinema, nota o realizador, apropriadamente), que é ela própria um local de emblemática fronteira, território movediço (politicamente falando) e de confronto de identidades.
A segunda, claro, permite-lhe ter o olhar inapreensível e eternamente distanciado de Jeanne Balibar como mediador do seu próprio olhar.
Para além da narrativa propriamente dita, que conta a investigação de Balibar sobre o tal escritor que nunca escreveu, o filme cria duas outras narrativas que emanam dela e só existem no filme e pelo filme. A história de como Balibar, tentando encontrar-se, se vai perdendo mais e mais (assim como a sua investigação quanto mais se aproxima mais se parece afastar), e de como o filme vai ecoando a sua própria relação com os cenários e com a cidade de Trieste. Amalric diz que não fez "repérages", que chegou a Trieste e filmou. Pode ser "boutade", mas a verdade é que esse efeito de imersão repentina na cidade está no filme, assim como um curioso efeito de ricochete - como se quanto mais a câmara revelasse de Trieste, quanto mais entrasse pela cidade adentro, mais esta se lhe negasse e mais preservasse o seu mistério. Há sempre uma surpresa a cada esquina, e a sequência emblemática dessa ideia bem pode ser a do regresso à praia de Balibar depois de ter adormecido em cima da prancha de surf.
Mas há também o conto filosófico, de contornos indefinidos - e os trocadilhos com a palavra "estádio", que estão na raiz do enigmático título e se assumem com ironia ao longo do filme, são uma maneira de obscurecer esses contornos. A verdade é que o filme acaba mesmo no estádio de Wimbledon, com um plano de Balibar mais Mona Lisa do que nunca - é o quê, o estádio de Wimbledon (o conceito, não o lugar)? O impasse absoluto, o falhanço completo? Ou, pelo contrário, a resolução de tudo isso?