Uma telenovela portuguesa, com certeza
De há uns quatro a cinco anos para cá, salvo algumas excepções, o original telenovelesco português tem andado bem e recomenda-se. De popularidade. Os seus criadores dizem que tal se deve a um processo de identificação com o que é genuinamente português. Já lá vão 20 anos desde "Vila Faia".
É no escritório solarengo, no primeiro andar da sua casa em Cascais, que Tozé Martinho cria as "pessoas" das histórias que assina como originais de telenovela portuguesa. Nas paredes em volta, estantes guardam livros - clássicos, muitos, e também os manuais de Direito, licenciatura que terminou no passado ano lectivo - e recordações imensas: os galões da farda do tempo de guerra, fotografias que captam momentos de cenas de séries e novelas em que já participou... E já foram muitas. "Trabalho em televisão há 25 anos. Já fiz 17 novelas como actor. Já fiz de tudo: realizei, produzi, representei, escrevi... participei em alguns guiões sem assinar autoria e fui autor e co-autor de vários projectos que começaram há alguns anos". Enumeradas as coisas assim parece estar tudo dito. Mas não está. Longe disso: há algo que Tozé Martinho aqui não enunciou. Ele foi um dos responsáveis pelo relançar da popularidade das telenovelas portuguesas. Esteve na génese do ciclo de telenovelas recentes que recapturaram o imaginário e a preferência das audiências televisivas portuguesas: do seu punho saíram, em parceria com Sarah Trigoso e Cristina Aguiar, "Todo o Tempo do Mundo" e "Olhos de Água", dois projectos que - a par de "Jardins Proibidos" e "Filha do Mar", da autoria de Manuel Arouca e Tomás Múrias, e também de Ana Casaca naquela última - formaram uma nova onda de interesse dos telespectadores portugueses pelo produto novelesco genuinamente nacional. Para Tozé Martinho o sinal de mudança foi dado com "Todo o Tempo do Mundo". "Creio que foi esse o projecto que colocou as audiências das telenovelas onde estão agora", refere sem hesitações. "Desta história recente de popularidade das telenovelas portuguesas creio que a primeira a ombrear com as produções da Globo foi a 'Roseira Brava', uma novela que ganhou à brasileira que passava no mesmo horário. Mas foi desde 'Todo o Tempo do Mundo' que se deu o abanão, foi a partir daí que as pessoas começaram a acreditar que era possível uma sapatada dada por um português".A telenovela, que contava a história de um homem que, de repente, se via enriquecido graças a um bilhete de lotaria, foi inicialmente apresentada à SIC e também à RTP. "Os primeiros responderam não estar interessados e os segundos nem sequer responderam", recorda o actor e guionista. "E depois tive uma reunião com o José Eduardo Moniz que, na altura, estava a decidir com o que se estrear na grelha da TVI no que toca às telenovelas. Foi nessa mesma reunião, no final, que ele me disse 'compro essa'. Ele é um homem profundamente conhecedor do que é dirigir uma estação de televisão no que toca à programação e compreendeu perfeitamente tudo o que eu lhe estava ali a dizer... Creio que hoje está visível para todos, e é um facto incontornável, que foi a TVI a retomar a popularidade das telenovelas portuguesas". A TVI abriu os cordões à bolsa e apostou forte e feio nestes projectos aliando-se em parceria à NBP (Nicolau Breyner Produções) que, sobejamente, sabe em que terreno se está a mexer quando toca a produzir telenovelas. Tozé Martinho exemplifica: "Antes esbarrávamos em coisas absolutamente ridículas como, por exemplo, ter um personagem riquíssimo que tínhamos que pôr a conduzir um carro de gama média-alta ou até média porque não havia orçamento para alugar um carro a sério. O público já não se deixa enganar com produções de baixos custos."Abrir os cordões à bolsa não foi tudo. O respeito pelas regras do jogo e, acima de tudo, das regras de "fabrico" do produto telenovelesco, deu de uma assentada os factores para uma fórmula de sucesso junto do grande público português: uma história, teias de ligações entre personagens, técnicas de realização e montagem e o cuidado de trazer para o ecrã as coisas com que os portugueses se identificavam. "De maneira geral tem-se procurado abordar os temas pertinentes nos momentos que se vivem e que se identificam com a nossa maneira de ser, e isso é bom", refere Francisco Nicholson, actor e guionista de inúmeros projectos televisivos, de séries a telenovelas, e criador daquela que foi a experiência inaugural no panorama novelesco português: "Vila Faia".O mais recente projecto de telenovela de Nicholson, "O Olhar da Serpente" (cujo guião foi feito a partir de um trabalho de investigação da jornalista Felícia Cabrita, e inspirado na história de Maria da Graça, a célebre protagonista do caso de corrupção "São Bento Gate" que abalou Portugal nos anos 80) será, afirma o guionista, mais um exemplo desse fenómeno de identificação: "A personagem principal, a Maria dos Prazeres, é uma mulher com que nos podemos cruzar num aeroporto, numa casa de chá, numa loja, e que nos pode dar referência de alguém em que nos iremos rever, ou rever alguém que conhecemos".Mais do que as personagens, também os temas, os assuntos que o enredo toca devem ter que ver com a realidade, "nem que seja para abrir caminho e pôr as pessoas a falarem das coisas que ainda não estão muito à vontade para falar mas que entram aí pelos olhos dentro de todos". Nicholson recorda, por exemplo, o tempo em que "Origens" estava a ser exibida: "Corri o risco sério de me baterem na rua e de a telenovela ser completamente demolida... ah! falar-se da dependência da droga era então um tabu! Lembram-se? Era o Nando, interpretado pelo António Feio, uma interpretação magistral... mas as pessoas não gostavam dele, porque era um drogado e que mais..." Francisco Nicholson vai revelando: "É como a questão da violência doméstica... ainda anda por aí no limbo... pois vamos falar disso agora em 'O Olhar da Serpente'", assegura.Com mais ou menos efeitos de enredo não se anda sempre à volta de uma fórmula de "luta" entre ricos muito malvados e pobres ainda mais honestos? "Mas não é só nas telenovelas que há essas batalhas entre ricos e pobres, também na vida real é assim. Tudo na vida se resume a uma luta pelo poder. Até no amor... há um parceiro que quer influenciar o outro. Sim, há sempre ricos e pobres, e tramóias e cobiças, e amores desavindos... hmmm... sim e filhos à procura dos pais e pais à procura dos filhos. Nesta minha nova telenovela há um pai à procura de um filho", argumenta Francisco Nicholson.Até o sucesso de exportação do produto telenovelesco (seja dos produtos estrangeiros para Portugal como o contrário, que também já vai acontecendo) explica em boa parte essa característica essencial da telenovela: ela é, sem dúvida, um produto de formato universal. "As pessoas quando vêem novelas vêem a sublimação dos seus desejos, angústias, desaires. Há uma espécie de exposição do que é normal na nossa vida. Concordo que algumas coisas que vemos numa telenovela não terá muita identificação com as populações mais urbanas, mas há todo um país onde aqueles imaginários ainda são muito próximos de uma raiz cultural construída nas falhas", refere Virgílio Castelo, co-autor da telenovela "Sonhos Traídos" com Maria João Mira. E exemplifica: "Há um tipo de seiva um pouco camiliana que corre no país - assassínios, órfãos, estupros. Não só no imaginário, mas também, em alguns casos, na vida das pessoas. Ainda há por aí casos de morte à sacholada por causa de um riacho..."Tenhamos é por certo que a indústria se desenvolveu: é algo que veio para ficar e ficou mesmo. Foi-se conquistando o mercado e foi-se conquistando um espaço para a ficção nacional. "E entretanto foi aparecendo gente nova e meios novos a todos os níveis, desde a produção aos guionistas, e tudo isso contribuiu para dar um novo fulgor a esta indústria. A transformá-la verdadeiramente numa indústria de audiovisuais em Portugal", adianta Francisco Nicholson. Virgílio Castelo partilha esta ideia: "Há sem dúvida uma maneira portuguesa de fazer telenovela. De produzir há com certeza, e uma maneira própria que se tem vindo a afirmar", afirma. "Tenho a intuição que este sucesso vivido recentemente pelas telenovelas portuguesas tem a ver com uma recuperação difusa da identidade portuguesa que se tem vindo a diluir depois de 1986... Acho que estamos a agarrarmo-nos ao que é genuinamente português".Mas tal importa um preço, no entender de Virgílio Castelo. Ou antes, uma norma de conduta: "É essencial limitar a importação e a adaptação dos produtos estrangeiros. Há que apostar mais na produção de originais portugueses". Tozé Martinho reforça esta linha de acção: "As telenovelas portuguesas serão tanto melhores quanto mais margem de criação for dada aos autores, mas margem de criação para se fazer coisas de raiz".Estava-se em Maio de 1982 quando o primeiro episódio da primeira telenovela portuguesa foi exibido. Era a história de João Gudunha (interpretado por Nicolau Breyner), com diálogos assinados por Francisco Nicholson, que, por esses tempos, se sentia a chegar à Terra Prometida: "Tivemos a sensação de sermos descobridores, foram sentimentos de descoberta e aventura muito grandes". E, curiosamente, a "Vila Faia" nem estava para ser escrita por Nicholson. "Mas creio que estava pré-destinado a escrevê-la", conta, com um encolher de ombros e uma expressão de um quase zombeteiro fatalismo. "O projecto arrancou com outra guionista (Odete San Maurice, experiente em radionovelas), a qual foi despensada ao fim de alguns meses, e o Nicolau Breyner - que também participou no trabalho de escrita do texto, para além de ter a seu cargo a direcção de actores - e o Thilo Krassmann, o produtor, foram então desafiar-me a mim para abraçar aquele trabalho", recorda.Recebeu então muitos conselhos para não lançar mãos a tal tarefa: "Alguns, muitos, amigos meus aconselharam-me a desistir. As pessoas achavam que não éramos capazes de fazer aquilo e que cairíamos no ridículo aos olhos do país... que estávamos a pôr as nossas carreiras em alto risco. Por mim creio que o que fizemos há 20 anos foi um trabalho limpo, asseado e profissionalmente muito aceitável."Muitos dos projectos terão morrido à nascença. "Outros matam-se a si próprios e deixam uma sensação desagradável no ar", refere Tozé Martinho, para quem as telenovelas tinham a ganhar em serem mais curtas. "Histórias intermináveis degradam a ambiência em vez de criarem apetências. Há casos em que o desfecho é demasiado remoto e nem sequer é credível. É que até o disparate tem que ser muito sério para ser credível", defende. E depois há as tentações. "Sim, há sempre aquela tentação de resolver problemas com as soluções que já se conhecem e que já se sabe que dão resultado", concorda Virgílio Castelo. Mas, reitera, o importante é procurar escapar a essas estandardizações: "Tentámos constantemente com os 'Sonhos Traídos' não cair muito numa narrativa que deitasse mão a ferramentas que tínhamos pudor em usar, apesar de já provadas que dão bons resultados". "Sonhos Traídos" teve o começo comum de inúmeros - todos? - os projectos recentes de telenovelas portuguesas: autor e canal televisivo acertam agulhas quanto ao que se pretende e o enredo é construído a partir daí. "De facto os 'Sonhos Traídos' nasceram a partir de um pedido da TVI à Casa da Criação (uma espécie de grémio onde são trabalhados não apenas muitos dos originais novelescos portugueses, mas onde também são feitas adaptações de produtos estrangeiros como "Nunca Digas Adeus", "O Último Beijo" e "Anjo Selvagem"). E o que nos foi pedido foi uma história com quatro irmãs, uma história que então apresentámos ao canal e que foi recebendo desenvolvimentos. Esta história, tal como todas as histórias da TVI, assim como de outros canais, foi sendo conduzida conforme à estratégia do canal, sendo corrigidas direcções quando necessário", explica Virgílio Castelo.Quer isto dizer que há logo à partida concessões da visão artística do autor? "O que se passa é que é muito difícil um qualquer autor impor-se a uma máquina de produção e difusão. É que estamos a falar de uma ficção em que o autor tem mesmo que saber ouvir", refere Virgílio Castelo. O que é reiterado por Francisco Nicholson: "O aspecto de mercado é algo que tem que ser considerado na feitura de um guião. É claro que advêm daqui limites à criatividade, mas daí a dizer que somos tentados a escrever apenas aquilo que sabemos que irá agradar ao público vai uma grande distância".Tratando-se de uma indústria já com bastante fôlego, em que uma novela emprega cerca de 250 a 300 pessoas e movimenta à volta de cinco milhões de euros, não é de admirar que haja o entendimento comum de que as funções de cada um dos intervenientes tenham que caminhar para um único objectivo: o de sucesso da telenovela. Tozé Martinho afirma que o guionista tem acima de tudo que trabalhar com distância e habilidade: "Tem que haver isenção e inteligência de escolhas. Por exemplo, às vezes dizem-me que gostavam que fizesse uma coisa nos Açores... E uma pessoa fica a pensar nisso e, às tantas, até pode ser que venha dali qualquer coisa, mas se não vem, não vem". De resto, é o momento da génese que cria a maior excitação, assevera. "O mais divertido de todo o processo é o momento do nascimento da ideia, aquele momento em que a ideia nos ocorre e se salta da cama para o computador para escrever tudo e não se perder nada. E às vezes andamos assim naquelas fases em que saímos com os amigos e em que se vai às aulas mas não estamos de todo lá. Estamos é a matutar, até se ouve a cabeça a pensar... E sabemos que não há maneira de explicar aos amigos, nem a ninguém, que naquele momento estamos com a 'Anabela' ou com o 'Lucas'. Esta é sem dúvida a parte mais divertida, a mais interessante".E o resto? "O resto, depois, é trabalho duro. Investigação e cuidado naquilo que se faz", afirma Tozé Martinho. "Por vezes dou comigo à volta de uma frase durante uma hora ou mais. Telefono a amigos a perguntar-lhes como é que diriam aquilo, ou desço e venho perguntar à Ana Rita (a mulher) ou aos meus filhos. Creio que o máximo de horas que já estive de seguida a trabalhar foi com os 'Olhos de Água' em que numa ocasião estive a escrever dez horas seguidas sem me levantar, com a Ana Rita a levar-me o almoço e o jantar ao escritório. Mas em média creio que andará à volta das seis horas de trabalho de escrita diária". Escrita que é intercalada e/ou preparada necessariamente por uma investigação que se quer detalhada e extremamente cuidada. "Então se entramos por campos que não dominamos, o dever e o brio profissional dita que investiguemos as coisas. Por exemplo, se tenho um polícia na telenovela, tenho que falar com polícias para perceber como agem, como falam. O mesmo com médicos ou engenheiros ou qualquer outra coisa"."É também um trabalho que causa muita angústia", aponta Francisco Nicholson. "É uma angústia com que vivo neste momento, agora mesmo, com 'O Olhar da Serpente'. Falta-me escrever ainda 30 episódios... tenho que os fechar, tenho que encontrar os destinos de toda aquela gente como se fosse um Deus: quem castigarei? quem recompensarei? Ainda estou longe de saber onde a história me vai levar... mas este é um método que não aconselho a ninguém. Eu é que sou caótico e anárquico a trabalhar. Mas este é um trabalho que tem regras. E regras que eu conheço de cor e salteado", refere Nicholson.Tozé Martinho chega mesmo a preferir chamar-lhes "pessoas" em vez de "personagens". "É mesmo assim", acena com a cabeça, "nós fazemos pessoas, personagens que são pessoas, que têm desde logo que ser pessoas. Algo com que também Virgílio Castelo concorda em boa medida: "Ao longo do caminho, há sempre uma ou outra personagem que me surpreende e ganha outro desfecho daquele que para ela tinha calculado. É um facto: as personagens ganham vida nas histórias, mais ainda quando são interpretadas", achega.E às vezes pequeninos detalhes podem transformar a história por completo. Personagens sem importância nenhuma podem revelar-se incontornáveis, figuras centrais do enredo... "e às vezes pelas razões mais inesperadas", adianta Francisco Nicholson entre risos. Passando a explicar: "na sinopse das 'Cinzas' era feita referência a um incêndio que deflagrava numa aldeia e que levava à descoberta de um esqueleto, e era daí que se lançava a história. Pois quando chegou a altura de pôr aquilo em guião vi que tinha ali um problema para resolver: quem é que descobria o incêndio e ia avisar a aldeia que ficava a cinco quilómetros? Foi só aí que foi criado um vagabundo, um bêbado vagabundo que levou o Nicolau a perguntar quem era aquele personagem que não estava na listagem para os "castings". Disse-me ele que era importante saber, havia que saber quem era o tal vagabundo, se ele era importante ou não para se saber quem se contratava. Eu respondi-lhe: 'Olha, se é para seres tu, ele é o protagonista, senão faz-se com um figurante'. E ele disse logo que topava, que fazia ele o tal vagabundo... o vagabundo que então ganhou nome - o Securas - e acabou mesmo por ser o personagem principal das 'Cinzas'. E foi excepcional."