Leiria bebe água de rio cercado por poluição
"Agora é que as pessoas de Leiria ficaram a saber que andam a beber água do rio." O comentário de António Carvalho, 65 anos, resume a ironia de uma cidade que cresceu a olhos vistos nos últimos anos, mas onde durante cinco dias mais de 20 mil pessoas ficaram privadas do abastecimento de água devido a uma elevada carga de poluição na captação do rio Lis.O ex-presidente da Junta de Freguesia de Cortes, localidade do concelho de Leiria atravessada pelo Lis, explica que o curso de água, nos dias a seguir a 17 de Setembro, quando foi detectada a poluição, "levava muita espuma" e que todos os sintomas apontam para efluentes não tratados da indústria dos curtumes. "Leiria já devia ter tomado providências há muitos anos para evitar uma situação destas", reclama António Carvalho. A aldeia deste antigo autarca socialista não sofreu com a falta de água, por ser abastecida por um furo. Ao contrário de uma parte da sede do município, onde se bebe água tratada da captação superficial do Lis."Era um cheiro a curtumes que não se podia. Quando rebenta a 'garóta' [grota, cavidade da nascente do rio] toda a porcaria vem por aí abaixo", conta Saúl Almeida. Este funcionário da junta de Cortes não tem pejo em responsabilizar pelo sucedido as fábricas de transformação de peles da zona de Minde. "Estou habituado ao cheiro dos curtumes e aquilo era uma coisa doida", corrobora outro morador, Ezequiel Ferreira.Apesar da convicção dos moradores de Cortes, é pouco provável que a contaminação tenha tido origem em Minde ou Mira de Aire, onde os algares (grutas formadas no maciço calcário por acção erosiva das águas) são usados para despejos clandestinos. Isto porque estas zonas drenam para a bacia do Alviela, um dos afluentes do Tejo (ver texto nestas páginas). E junto ao Lis não faltam potenciais focos de poluição. Ao longo do curso do rio, Souto Sico possui várias indústrias geradoras de efluentes poluidores, de aviários a explorações de suínos. No meio da paisagem verdejante polvilhada de moradias e armazéns vislumbram-se, aqui e ali, autênticas lixeiras com todo o tipo de detritos. Em Fontes, aldeia com duas centenas de casas encavalitadas nas vertentes cortadas pela nascente do Lis, a água mostra-se (agora) límpida. "Dantes a água era limpa. Íamos lavar a roupa ao rio e até as pedras brilhavam", recorda Maria Emília, com os 78 anos vincados no rosto alegre. A moradora, cabelo branco liso e curto, sobe a rua que tomou o nome do sítio onde nasce o Lis. Os dedos das mãos estão negros "de andar às nozes" e segura num braço um molho de couves. O pequeno troço do rio perto da nascente, esclarece, só aparentemente está seco. A água escorre por baixo das pedras cobertas de musgo, até irromper serenamente uns metros mais adiante, onde se junta a saídas de água mais movimentadas.A aldeia é abastecida por água canalizada. A energia eléctrica permite, entre outros confortos, ver um pouco de televisão, mesmo para os olhos cansados da moradora. Já os efluentes domésticos correm, em toda a aldeia, para fossas. "É o primeiro lugar onde devia ter [rede de] esgotos e ainda não chegou cá", reconhece Maria Emília. Muitas casas possuem currais e quintais de onde os residentes arrancam parte do sustento."As águas têm andado podres", comenta um morador no café da aldeia. Numa casa próxima, um tubo de plástico sai por baixo do portão da garagem, atravessa enterrado o asfalto da rua e pende discretamente do paredão do rio. No momento, sem serventia. Mas o morador prefere olhar para mais longe. "As pessoas quando vão a Fátima têm que fazer as suas necessidades em algum sítio...", aponta o morador, numa alusão ao movimento que o lugar de peregrinação do vizinho concelho de Ourém regista em determinadas datas do ano.Outra moradora prefere mencionar "as fabriquetas", de peles ou de criação e transformação de animais, espalhadas pelos montes em redor da aldeia. Mesmo as que têm fossa costumam ter um cano à mão para aliviar a carga quando chove. Depois, sabe-se lá como é que a fossa foi construída, pois, como admitia um elemento da Guarda Nacional Republicana de Mira de Aire, "é impossível verificar se o fundo não está roto".Isabel Damasceno, a social-democrata que há dois mandatos governa com maioria absoluta o município de Leiria, garante que a rede de esgotos de Fontes está em fase de adjudicação. Todavia, a autarca recusa que a causa da poluição esteja na aldeia, que "não podia gerar uma poluição desta dimensão durante três dias consecutivos". Até porque, afiança, o troço da nascente era o que transportava a menor carga poluente, que afluía ao Lis através de outras linhas de água a jusante. Assim, resta a explicação admitida por muitos e o "Jornal de Leiria" titulava que a "natureza puxou o autoclismo", lavando os algares da serra.A população do concelho cresceu, na última década, 17 por cento e a captação superficial no Lis assegura 40 por cento do consumo de água no município. Posto isto, Isabel Damasceno lembra que Leiria "bebe água do rio desde sempre". E, se servir de consolo a quem ficou sem água nas torneiras durante cinco dias, a autarca também sofreu os efeitos da seca na zona onde reside: "Devo ter sido uma das últimas pessoas a ter água..."