"O que consegui até hoje"
Completam-se dez anos sobre a edição de "Coração tão Branco", obra-prima de Javier Marías, um escritor em estado de graça.
É no 3º piso de um edifício do séc. XVI, na Plaza de La Villa, em Madrid, que vive o monarca de um reino literário. Lá dentro, sob a luz coada pelas portadas das varandas, milhares de livros e outras tantas antiguidades (há um verdadeiro exército de soldadinhos de chumbo) rodeiam Javier Marías, escritor, tradutor e editor que ontem completou 51 anos. Foi ali que o Mil Folhas conversou com o autor de "Negras Costas do Tempo" (lançado em Julho último pela Relógio d'Água), cerca de uma semana depois de ter concluído o primeiro volume do seu próximo romance, ainda sem título. Foi ali que Marías expandiu a sua liberdade narrativa - "Escrevo para não ter chefe e para não madrugar" - e comprovou a humildade de um mestre literário. Foi ali, finalmente, que o escritor cuja obra tem suscitado grande interesse em Portugal mostrou os seus dotes de bom conversador e revelou a origem da singularidade que envolve a sua bibliografia.Mil Folhas - Como encara o facto de ser criticado pelo seu estrangeirismo e de não ser um típico escritor espanhol?Javier Marías - É uma coisa que sempre me acompanhou na minha carreira. Comecei a escrever muito jovem, aos 19 anos, e tive períodos sem publicar nada. Durante muito tempo, escritores e críticos diziam, para me atacar, que as minhas novelas pareciam traduzidas do inglês. Para mim, que fui tradutor, sempre vi essas críticas como elogios. Não é um ataque, porque há traduções maravilhosas e esse trabalho de passar um texto de uma língua para outra, sendo, sem embargo, o mesmo, é importantíssimo. Às vezes, os escritores dizem essas frases "A minha pátria é a minha língua" ou "A minha pátria é a minha infância"... Pois eu não acho nada disso determinante. Não vejo a língua como a minha pátria. As línguas são importantes e é significativo manejá-las bem, mas não são decisivas para atribuir uma paternidade literária. A prova é que houve muitos escritores que eram de uma língua e escreveram noutra. A minha literatura são os assuntos que trato. Mas sobre essa questão da espanholidade houve sempre histórias curiosas. Em Itália, os meus livros têm sido bem recebidos pelos leitores, pela crítica e ganhei prémios. Mas a recepção que existe hoje demorou anos, porque alguns editores quando recebiam livros meus diziam: "Ah, Marías é muito pouco espanhol." Durante muito tempo esperava-se dos autores espanhóis uma literatura tremendista de ciganos e mulheres com facas na liga. Eu nunca fui por esses caminhos.O Estado paga e eu não aceito dinheiro do Estado. Nem sequer vou aos cursos universitários de Verão. Nesse sentido, percebo que não seja encarado como um escritor espanhol "oficial" e entendo que isso desagrade a essas pessoas que representam o Estado e ao "mundillo" literário em geral.As minhas primeiras novelas criaram desde logo essa ideia de estar fora da espanholidade. A primeira que escrevi ["La Víspera"] foi nos Estados Unidos e a segunda ["Los Dominios del Lobo"] era muito vitoriana. A acção decorre nesse período histórico e tem personagens inglesas, o que gerou alguma perplexidade. "Porque não fala este rapaz do seu mundo?", perguntavam. Falava, sim, das minhas referências. Cada um escreve sobre o que quer e como quer. Não deve haver esse tipo de tirania estética.Creio ser bastante de esquerda, inclusive bastante mais do que aqueles que são oficialmente de esquerda. Mas não sou alinhado partidariamente. Há coisas que me parecem estupendas, outras horríveis, e há que dizê-lo. A esquerda ortodoxa, previsível, diz coisas de uma estupidez descomunal. Há que dizê-lo e não procurar um qualquer paliativo. Procuro, portanto, opinar deveras e não dizer meramente o que penso que os meus leitores actuais querem que diga...Houve atrocidades de ambos os lados. Madrid estava na mão dos republicanos e houve grandes barbaridades protagonizadas pelos sectores estalinistas. Um tio meu, de 17 anos, foi morto de uma forma absurda: deram-lhe um tiro na nuca apenas porque sim. Houve barbaridades por todos os lados. Mas com o tempo vamos percebendo que a guerra civil também foi uma história de gente muito má, os franquistas, contra os outros que no princípio eram bons e se transformaram em menos maus. É de um simplismo excessivo ver a guerra civil como uma história de bons contra maus. Os meus livros obviamente que reflectem essa memória familiar e a minha própria vivência.Não havia política, como acontece em todas as ditaduras, e todos se politizavam. Quando não há causas normais para que a política exista, politiza-se tudo. Este cinzeiro é de direita ou de esquerda? [aponta para o cinzeiro colocado na mesa diante de si] No tempo de Franco, ir ao futebol era de direita. Aos touros também. O vinho era de esquerda. O "whisky" era de direita porque vinha do estrangeiro e o vinho era dos operários. Estas coisas estúpidas e horríveis, de que todos padecemos, turvaram as visões sobre a história. Por isso, muita da literatura anterior à minha geração era bem-intencionada, mas era demasiado dependente de factores extraliterários, ao serviço da luta antifranquista e com a fragilidade inerente ao facto de que nessa guerra um livro poderia fazer muito pouco.A minha geração distinguiu bem - ainda com Franco vivo - o que eram as suas obrigações enquanto cidadãos e escritores, se é que existem deveres. Como cidadão vais às manifestações, empenhas-te, podes ser preso. Mas como escritor deves procurar caminhos próprios.Agora existem muitas pessoas que dizem que devíamos ter seguido por um outro caminho. Sinto muito, mas eu também gostaria de ter agido de um modo mais heróico.... e não fui mais heróico. (risos) Nesse sentido, creio que foi bastante bom tudo ter acabado bem. Porque Espanha é um país um pouco violento, um país onde houve uma guerra civil há não muito tempo. E quanto mais leio sobre esta guerra mais incompreensível ela me parece.O facto de a ruptura, em 75, ter sido feita de uma maneira pacífica foi magnífico. Houve que pagar o preço, mas foi muito pouco - sobretudo porque nada foi pago em vidas humanas, em violência ou em sangue, e não houve rancores. Na generalidade teve efeitos maus, claro que sim. E um dos piores aspectos foi o facto de eu e outras pessoas termos sido vítimas desses efeitos. Por exemplo, há uns tempos atrás escrevi um artigo recordando certas coisas, e muitas pessoas, inclusivamente pessoas da esquerda, disseram-me: "Eh, já não se escreve ou fala sobre isto!" Vejamos, uma coisa é escrever sobre a morte de Franco, outra é o facto de depois do seu perecimento ninguém ter sido acusado de nada. Não houve ajustes de contas e deu-se uma amnistia geral. Ninguém foi perseguido - nem antes nem depois da guerra. O que resulta daqui é que nem sequer se pode falar sobre isto e muitos escritores, mesmo os que são de esquerda, não escrevem sobre esta questão. Quando o fiz, encontrei reacções de fúria. Existe um tabu sobre este assunto. Até porque muita gente foi absolvida... Se as coisas foram como foram, então tudo bem. Se tivesse ocorrido uma revolução em Espanha, o acontecimento seria muito violento. Este país é como uma acendalha: converte-se num incêndio muito facilmente. Em Espanha, a direita - a direita civilizada que existe em França ou em Inglaterra - praticamente não existe. Passou muito pouco tempo desde a abertura à democracia. A classe política é incapaz. O partido socialista [PSOE] acabou por naufragar demasiado cedo. E em Portugal, ao que sei, não existiram tantos casos de corrupção no Partido Socialista como aqui. A corrupção é imperdoável. Graças a González e aos seus disparates, o PP governa agora Espanha.Não sou dessas pessoas que vivem fora do mundo. Essa dimensão de me instalar na ficção não corresponde necessariamente a um conforto, porque há muitas coisas sobre as quais não é muito fácil escrever. Há coisas que só penso quando estou no processo criativo da escrita e muitas delas não são gratas de pensar. Por vezes, tenho más sensações sobre aquilo que escrevi e questiono-me sobre o direito de meter na cabeça de alguém certo tipo de ideias. f-iR. - Sou inimigo do artista atormentado. E não escreveria se não tivesse prazer nisso.Os livros que vieram a seguir tiveram mais êxito. "Coração tão Branco" já é um livro para um milhão de pessoas só na Alemanha e teve um grande êxito em outros países. Se eu continuasse a ser um escritor de dez ou quinze mil leitores, ninguém diria: "Que péssimo, só tem quinze mil leitores!" Portanto, continuo a escrever como sempre o fiz, escolhendo os temas que me apetecem e com o ritmo que quero. Acho que já tive muita sorte com a difusão dos meus livros. Existem muitos escritores bons que não têm sorte nenhuma. Não se consegue nada para sempre, mas não tenho medo de perder nada do que consegui até hoje. Isso não me condiciona na escolha das fórmulas literárias, nem gera fenómenos de mimetismo em relação a livros que tiveram êxito.Não tenho uma cadência organizada, nem planos narrativos. Não tenho um catálogo de temas. Posso até não publicar mais. Acabei há uma semana o meu próximo livro, escreverei um segundo volume a seguir, e não tenho título. Ainda nem decidi se vou dar um título único aos dois volumes, ou se darei um título próprio a cada um. Soa muito esquisito fazer um livro em dois volumes?f-iR. - Aqui em Espanha muitas pessoas têm mostrado o seu desagrado por estar a escrever um livro em dois volumes. Dizem: "Que chato ter de esperar pelo segundo volume." Ou "vai ficar muito grande...", etc. (risos)f-iR. - Acho divertidos os diários e as memórias, mas têm para mim um elemento de repetição. Escrever um diário, mesmo que não seja todos os dias, chegar a casa depois de jantar e comentar ou contar aquilo que aconteceu ou que foi dito, faz-me pensar: "Outra vez?" Os diários podem ser muito aborrecidos. Sei lá, chega o carteiro e depois... (risos)f-bR. - É um reino fictício, onde não há súbditos, mas é também uma ilha de verdade [é a mais pequena de três ilhas ao largo das Antilhas]. Segui a tradição de escolher os duques e seleccionei pessoas que admiro e com as quais tive algum tipo de relação pessoal directa ou por escrito. Todos eles são distintos escritores ou cineastas. Há apenas um critério de escolha: as suas obras têm de estar traduzidas em espanhol e em inglês. f-iR. - Não de todos. Não tanto como de Benet. Se é verdade que é um escritor difícil, é também verdade que é um escritor extraordinário e para a minha geração literária foi muito importante pelas possibilidades que nos abriu. Cada um seguiu o caminho que quis, mas Benet rasgou-nos horizontes. O que me interessa é o seu mistério, a sua linguagem metafórica sem o ser demasiado. Cervantes é o mesmo. O seu espanhol pode continuar a ler-se muito bem. Essa riqueza linguística delicia-me. Ambos tocaram tantas coisas, acenderam tantas luzes nos nossos caminhos que para mim são referências incontornáveis. Há outros autores magníficos que não têm esse dom, não acendem qualquer luz. Pelo contrário, apagam-na.Os prémios que mais gostei de receber foram os estrangeiros. Com esses tenho a sensação de que as pessoas gostaram verdadeiramente dos meus livros. No estrangeiro ninguém me conhece, ninguém pode dizer que sente simpatia ou antipatia por mim. No meu próprio país, os prémios representam sempre um elemento de dúvida.