Homenagem a Lambertini no Museu da Música
Com a exposição "Michel'angelo Lambertini (1862-1920)", o Museu da Música presta homenagem a uma das figuras cruciais da vida musical portuguesa. Para ver até 16 de Novembro.
Fora dos circuitos musicais poucos terão, porventura, a consciência da importância inestimável da personalidade de Michel'angelo Lambertini na vida musical portuguesa dos finais do século XVIII e inícios do século XX. Actualmente, a sua herança mais visível é a valiosa colecção de instrumentos que se guarda Museu da Música (situada na Estação de Metro do Alto dos Moinhos) que o ilustre músico e musicógrafo tinha reunido com o intuito de criar um Museu Instrumental em Lisboa - o sonho não chegou a concretizar-se durante a sua vida por falta de vontade política, um cenário que se continuou a repetir muitos anos mais tarde. No entanto, a acção e poder de intervenção cultural de Lambertini foi muito mais ampla, merecendo maior divulgação. Assinalando os 140 anos do seu nascimento, encontra-se patente, desde o passado dia 25 de Julho, no Museu da Música, a exposição "Michel'angelo Lambertini - 1862-1920", a qual poderá ainda ser visitada até 16 de Novembro. Uma criteriosa selecção de documentos pretende revelar a multiplicidade de facetas de Michel'angelo Lambertini, homenageando simultaneamente aquele que foi o mentor da criação do Museu Instrumental, antepassado do Museu da Música. Detentora de seculares tradições artísticas e musicais - a sua figura histórica mais importante teria sido Prospero Lambertini (1675-1758), que ficou na história como o Papa Bento XIV -, a família Lambertini, originária de Bolonha, teve uma presença regular em Portugal a partir de 1836, vindo a estabelecer ramificações no Porto e em Lisboa. Michel'angelo Lambertini nasceu na cidade Invicta (era neto do compositor e construtor de pianos Luiz Joaquim Lambertini), mas cedo se mudou para Lisboa, onde efectuou estudos musicais no Real Conservatório. A sua visão interdisciplinar da música levou-o a exercer funções tão diversas como as de pianista, maestro, compositor, musicógrafo e organólogo, para além de editor e comerciante. Foi o autor da primeira síntese da história da música portuguesa (publicada na "Encyclopédie de la Musique et Dictionaire du Conservatoire", em 1920), fundou a Sociedade de Música de Câmara, a Grande Orquestra Portuguesa (em actividade entre 1906 e 1908) e a Caixa de Socorro a Músicos Pobres, promoveu a representação portuguesa na Exposição Musical de Milão em 1881, editou o "Diccionario Biographico de Musicos Portugueses", de Ernesto Vieira (2 vols., Lisboa, 1900) - ainda hoje uma obra fundamental -, e foi um dos fundadores, director e redactor da revista "A Arte Musical". Num âmbito cultural mais alargado, há ainda que referir a sua actividade como organizador e animador de eventos musicais e literários. A ele se deve, por exemplo, a primeira actuação em Portugal, em 1901, da Filarmónica de Berlim. Teve igualmente um papel decisivo na reforma do ensino da música em Portugal e era, também, um ávido coleccionador de pintura (tinha telas de Columbano, Malhoa ou Machado de Castro), porcelanas, bronzes, pratas, e outros objectos, para além dos, já referidos, instrumentos musicais. O seu palacete na Avenida da Liberdade (é o edifício que hoje alberga o Wall Street Institute), construído pelo arquitecto veneziano Bigaglia, era um pequeno museu, para além de centro de reuniões artísticas e intelectuais. Não muito longe, nos Restauradores, ficava a Casa de Venda e Aluguel de Pianos Lambertini. A exposição agora patente no Museu da Música reúne pois testemunhos de toda esta fervilhante actividade, os quais nos ajudam a tomar consciência da sua enorme amplitude. Em dois corredores situados no espaço central podemos encontrar uma selecção criteriosa de objectos e registos de alguma forma associados à sua vida e obra. São cerca de 300 peças onde se incluem instrumentos musicais, programas, fotografias, obras relativas à sua actividade literária, livros da sua biblioteca pessoal, correspondência, apontamentos manuscritos, partituras, etc. Este foram ordenados em torno de quatro núcleos fundamentais: 1. Origens e meio familiar; 2. Educação, família e gosto privado; 3. Actividade Cultural e Musical (esta, sem dúvida, a mais interessante, subdividida nas secções Músico, Organólogo/Musicólogo; Pedagogo: Professor e Reformista do Ensino Musical, Editor/Comerciante e Coleccionista); 4. Lisboa há-de ter um Museu da Música. Esta última secção documenta as fases de reunião da colecção e as múltiplas tentativas de implantar institucionalmente o Museu Instrumental, constituindo portanto uma história dos antepassados do actual Museu da Música. Quer as peças expostas, quer os pequenos comentários que acompanham a catalogação são bastante sugestivos. No entanto, estes adquirem uma outra dimensão após a leitura dos vários artigos de divulgação e pesquisa que acompanham a excelente edição impressa do catálogo. As suas cerca 300 páginas, profusamente ilustradas e com um belo grafismo, aprofundam os temas apenas aflorados na exposição. Nele podemos encontrar textos sobre a família Lambertini em Portugal, uma nota biográfica detalhada, a genealogia da família, uma cronologia que põe em paralelo o percurso do homenageado, o contexto familiar e o contexto da época, ou ainda um apontamento, da autoria de Raquel Henriques da Silva, sobre a importância arquitectónica e decorativa do Palacete Lambertini na Avenida da Liberdade. O longo e detalhado artigo de Carla Capelo Machado, sobre as actividades musicais de Lambertini, é complementado pelos importantes contributos de Teresa Cascudo - com a sua panorâmica e reflexão crítica sobre "A Música em Portugal entre 1870 e 1918" - e de Joaquim Carmelo Rosa, que nos chama a atenção para a marca pedagógica de Lambertini e para a sua luta em prol de uma efectiva educação cultural e intelectual do músico ("Michel'angelo Lambertini e a causa da Educação Musical"). Precedida por uma introdução à origem e desenvolvimento histórico das "Colecções de Instrumentos Musicais" a nível mundial, escrita por Maria Helena Trindade (directora do museu e responsável pela supervisão da exposição), encontramos também abundante informação - a mais detalhada até hoje reunida - sobre cada passo de Lambertini na tentativa de criação do museu instrumental e, ainda, o relato das muitas vicissitudes da colecção após a sua morte até chegar local onde se encontra actualmente - as instalações cedidas pelo Metropolitano na Estação do Alto dos Moinhos.O carácter efémero é inerente a qualquer exposição, daí que o mais importante a assinalar seja o facto desta homenagem servir como impulso ao trabalho de pesquisa, quer da obra e personalidade de Lambertini, quer de outras dimensões da vida cultural e musical dos finais do século XIX e inícios do século XX. Este facto é tanto mais relevante, se pensarmos que este é um período que encontra quase por estudar. As infinitas pistas sugeridas por esta exposição e os frutos que já suscitou são contributos cruciais para futuras investigações em torno da vida musical deste período. Este comentário não deve, porém, dissuadir o público não especializado a adquirir o catálogo. De agradável e acessível leitura, este funciona igualmente como um guia precioso na descoberta duma personalidade tão apaixonante como a de Lambertini.