No clima político que o mundo atravessa, um filme como "A Soma de Todos os Medos" cai que nem mosca no mel. É uma adaptação de um romance de Tom Clancy, escrito em 1991 mas adaptado, de forma hábil, aos tempos contemporâneos. Exploração dos medos pós-guerra fria, e do estilhaçar da ordem mundial depois do degelo na relação entre o bloco Leste e os países ocidentais, a narrativa de Clancy assenta ainda na ideia de que o relacionamento Leste-Oeste (ou, para simplificar, Rússia-EUA) talvez tenha deixado de ser uma história de inimizade, mas continuou a ser uma história de rivalidade e, sobretudo, de mútua desconfiança.
"A Soma de Todos os Medos" põe então em cena uma personagem (um milionário alemão e neo-nazi, hipotético émulo ocidental de Bin Laden mas mais sagaz do que ele) apostada em explorar essa desconfiança. O seu projecto: provocar uma guerra entre os dois colossos, para que depois, das ruínas, possa emergir a espécie de al qaeda neo-nazi que ele anda há anos a preparar, à escala global.
Por mais ou menos plausível que sejam a história de Clancy e o argumento dela extraído, é fácil encontrar uma primeira virtude no filme de Phil Alden Robinson: é que, mesmo deixando de fora os chineses e se limite a referências marginais aos arábes e aos israelitas, "A Soma de Todos os Medos" não procura reduzir a complexidade do mundo. Numa altura em que as mais altas instâncias norte-americanas (sufragadas por analistas políticos do mundo inteiro que tinham pelo menos a obrigação de não suspender a sua inteligência nem pretender anestesiar a dos seus leitores) propõem uma divisão do mundo entre os que são pró-americanos e os que são anti-americanos, é bom ver um filme (americano) que restitui o mundo em toda a sua gama de cinzentos, para mais em plena consciência de que essas tonalidades variam consoante o ponto de vista do observador.
Também por isso, "A Soma de Todos os Medos" é menos uma aventura de Jack Ryan (a personagem de agente da CIA criada por Clancy, anteriormente interpretada por Alec Baldwin e Harrison Ford, agora a cargo de Ben Affleck) do que uma ficção política global desenvolvida de modo quase jornalísitco, polvilhada de personagens com peso, onde a de Ryan é apenas mais uma, narrativamente decisiva, mas apenas mais uma. Do mesmo modo, e a crer no retrato que o filme de Robinson dá da CIA (perigosamente a roçar o anti-americano, segundo os conceitos em voga, ou então não, visto que a CIA do filme também propõe o gatilho fácil como maneira de resolver os problemas), "A Soma de Todos os Medos" está longe de ser um daqueles filmes em que a CIA salva o mundo, para ser exactamente o seu contrário, um filme em que o mundo se salva, apesar da CIA.
arrepiante. A personagem de Jack Ryan, como se disse, dissolve-se (pelo menos em relação aos filmes precedentes), o que tanto pode ser uma consequência da falta de carisma de Ben Affleck, quer uma necessidade narrativa (que aposta no curioso anacronismo de filmar um Ryan jovem, no momento da sua afirmação como agente da CIA, quando ainda tem que conquistar o direito a ser ouvido), quer, hipótese mais credível, uma opção sustentada na vontade de abrir um pouco o leque e fazer de "A Soma de Todos os Medos" a tal ficção geopolítica.
Isto significa que o protagonismo se divide, e que há outras personagens fortes. A de Morgan Freeman, que é mesmo um grande actor, no papel do padrinho de Ryan, e a dos presidentes dos EUA e da Rússia. O que é curioso aqui, é menos a relativa densidade da personagem do presidente russo (uma vez despachada, nos primeiros minutos, a caricatura alcoólica de Ieltsin), mas o facto de, se essa personagem pode ser uma versão mais glamourosa de Putin, a do presidente dos EUA ser tudo menos uma versão (seja ela de que tipo for) de Bush... Tão mais curioso quanto o seu predecessor Clinton foi, inúmeras vezes, decalcado tintim por tintim em filmes de âmbito semelhante.
Um último aspecto curioso tem a ver com uma sequência em particular, a mais arrepiante de "A Soma de Todos os Medos": aquela que mostra uma explosão nuclear a arrasar a cidade de Baltimore (e a partir do qual os dados estão lançados para que americanos e russos entrem em guerra aberta). Há uma dimensão verdadeiramente brutal nessa sequência (que para mais é encenada de forma bastante seca), que vem do facto de os filmes americanos deste género, normalmente, acabarem antes de um tal acontecimento, e serem mesmo a história de como esse acontecimento foi evitado. Aqui, acontece mesmo.
Na ressaca dos atentados de 11 de Setembro, houve quem dissesse que eles, por mais ou menos previsíveis que abstractamente fossem, foram, na sua concretização, inimagináveis. O mínimo que se pode dizer, seguindo essa ideia, é que o 11 de Setembro alargou as fronteiras do que é imaginável e jurar-se-ia que a sequência de Baltimore, na sua inexorabilidade, é um produto directo desse alargamento. Correndo o risco de se insistir numa terminologia que está prestes a tornar-se cliché, talvez se possa dizer que "A Soma de Todos os Medos" é o primeiro filme a incorporar visceralmente o medo a que o 11 de Setembro ofereceu uma imagem.