Clementi redescoberto
De regresso aos Concertos Em Órbita/Portugal Telecom, Andreas Staier toca, esta noite, Haydn e Clementi, no pianoforte Clementi do Palácio de Queluz. Oportunidade para reavaliar um compositor esquecido, na passagem dos 250 anos do seu nascimento.
Após uma brilhante interpretação das Variações Goldberg, de Bach, há dois anos, e de uma apresentação com a Orchestre des Champs Elisées, no Coliseu do Porto no passado mês de Maio, Andreas Staier está de regresso a Portugal, mais uma vez por iniciativa dos Concertos Em Órbita/Portugal Telecom. A terceira actuação no nosso país, daquele que é um dos maiores intérpretes de cravo e pianoforte actuais, reveste-se também de um significado especial por outros motivos. Staier irá tocar no magnífico pianoforte Clementi (restaurado há cerca de um ano pelo holandês Joop Klinkhamer, com fundos doados pelo Em Órbita) pertencente à colecção de instrumentos históricos do Palácio Nacional de Queluz, um programa inteligentemente concebido que alterna obras do compositor (e constructor do instrumento) Muzio Clementi (1752-1832) e de Franz Joseph Haydn (1732-1809). Trata-se também de uma rara oportunidade para reavaliar uma personalidade musical polivalente (além de compositor, pianista e constructor de instrumentos, Clementi foi ainda maestro, editor e promotor de concertos), hoje quase esquecida, no ano em que se comemoram os 250 anos do seu nascimento.Nascido em 1955, na cidade alemã de Göttingen, Andreas Staier iniciou os seus estudos musicais pelo piano moderno mas, conforme contou em entrevista ao PÚBLICO (12-5-2000) rapidamente orientou o seus interesses para o cravo por achar que este se adequava melhor à música de Bach. Mais tarde, uma "master-classe" na Bélgica num museu onde havia uma colecção de instrumentos antigos, despertou a sua paixão pelo pianoforte. Cravista do lendário agrupamento Música Antiga de Colónia, com o qual colaborou entre 1983 e 1986, Staier desenvolveu posteriormente uma brilhante carreira a solo, tanto em cravo como em pianoforte, sem nunca negligenciar a música de câmara. Nela se combinam universos musicais tão distintos como os virginalistas ingleses do século XVI e as sonatas de Schubert, as tocatas de Bach e os concertos para piano de John Feld, os ritmos do fandango espanhol ou o Lied alemão, ao lado do grande tenor Christoph Prégardien. Um dos seus últimos registos é um soberbo CD (em cravo) dedicado a William Byrd.Staier gravou também um disco dedicado a Clementi - uma boa parte das obras registadas nessa ocasião fazem parte do programa do recital de hoje - que considera um compositor injustamente esquecido. Efectivamente, não obstante a sua actividade multifacetada e das importantes repercussões que esta teve nas gerações seguintes, muitas são as sombras que pairam sobre a sua reputação - é sintomático que os 250 anos do seu nascimento tenham passado quase despercebidos. As Sonatinas op. 36 e os Estudos do "Gradus ad Parnassum" continuam ainda hoje a fazer parte dos programas dos conservatórios, mas tirando estas obras - que nos oferecem, obviamente, uma visão redutora - é raro poder ouvir o resto da sua produção. As reticências em relação a Clementi não são de hoje: Mozart descreveu-o como um mero "'mechanicus' sem um pingo de sensibilidade e de gosto", Hugo Wolf afirmava que sentia um arrepio na espinha e que fazia o sinal da cruz cada vez que ouvia pronunciar o seu nome, Debussy satirizou os estudos do "Gradus ad Parnassum" na primeira peça do "Children's Corner"... No entanto, apesar destes juizos negativos Clementi foi um compositor de mérito, com uma influência decisiva sobre a escrita e a técnica pianistica moderna. Nele se inspiraram os seus discípulos e sucessores, incluindo Beethoven, que colocava as suas sonatas no mesmo plano qualitativo das de Mozart e as recomendava aos seus próprios alunos.Autor de cerca de 80 sonatas e de várias outras peças para pianoforte solo (Caprichos, Variações, Tocatas, Danças), bem como de uma importante produção didáctica, Clementi foi simultaneamente um brilhante concertista, professor conceituado, construtor de instrumentos e editor. Nascido em Roma em 1752, aprendeu música com professores locais até aos 14 anos, que o prepararam para ser organista. Foi então ouvido pelo nobre britânico Peter Beckford (primo do escritor William Beckford, que viveu em Portugal nos finais do século XVIII e nos deixou impressões registadas num interessante Diário), que se comprometeu a financiar a sua formação musical. Partiu para Inglaterra, onde estudou durante sete anos em Dorsetshire, na residência do protector e, aos 21 anos, fixou-se na capital britânica, onde passou a desenvolver as suas várias actividades. As suas aulas de piano eram as mais caras de Londres, o que lhe permitiu adquirir um bom suporte financeiro para criar uma editora de partituras e adquirir a firma de construção de pianos Longman & Broderip, quando esta faliu em 1798. Com a designação de Clementi & Co., esta veio a converter-se numa das maiores empresas musicais do seu tempo. Os seus pianofortes encontram-se entre os mais refinados da escola inglesa, liderada por John Broadwood, tendo ficado conhecidos pela sua sonoridade de carácter vocal, ideal para o "cantabile" e o "legato", e pela imaginativa e elegante caixa de ressonância. O pianoforte Clementi do Palácio de Queluz, que Staier vai utilizar, é um dos raros pianos de cauda sobreviventes saídos das suas oficinas, as quais produziram sobretudo pianos de mesa.No que diz respeito à linguagem pianística, Clementi foi também bastante inovador. As texturas cerradas, as linhas melódicas prodigamente decoradas com notas dobradas e surpreendentes cromatismos ou as inovações no plano da forma (como Beethoven, era capaz de construir sólidas estruturas a partir de motivos musicais curtos e despretenciosos) são elementos que profetizam as grandes obras para piano do pleno Romantismo. O programa proposto por Staier alterna pertinentemente composições de Clementi (as Sonatas op. 13 nº6 e op. 34, nº2; o "Prelúdio alla Haydn" e a Fantasia e Variações sobre a Ária "Au Clair de la Lune") com peças de Haydn (a sua última Sonata, Hob. XVI/52, e o Andante com Variações, em Fá menor, Hob. XVII/6), centrando-se portanto no género da sonata e da variação.Ao contrário de Clementi, Haydn não teve o pianoforte como centro da sua produção, nem representa, ainda, o exemplo típico do pianista-compositor das gerações seguintes. O seu valioso contributo no âmbito da sinfonia e do quarteto de cordas acabou por colocar na sombra a música de tecla, embora o seu papel neste último domínio esteja longe de ser negligenciável. A sonata e outros géneros para tecla, acompanharam-no ao longo da sua extensa vida, reflectindo as diversas inflexões do seu estilo musical, ao mesmo tempo que espelham a passagem de testemunho do cravo (destinatário das suas primeiras obras) para o pianoforte. As suas últimas sonatas são obras de recursos variados, que abrem caminho às exigências de expressão do Romantismo nascente. Por outro lado, sabe-se que Haydn tinha grande admiração pela obra para pianoforte de Clementi e que teria mesmo absorvido a sua influência, tal como a do meio musical londrino em geral, um dos mais avançados nesta matéria. A sua derradeira Sonata (nº 62, em Mi bemol maior, Hob. XVI/52), considerada como o apogeu da sua escrita pianística, foi precisamente escrita em Londres em 1794, com a finalidade de ser interpretada por Thèrése Jansen, notável aluna de Clementi.