Por onde se começa no novo filme de Christopher Nolan, "Insomnia"? Pelo princípio. O facto só não surpreende quem deixou escapar "Memento" (2001), o anterior filme do realizador britânico, onde se começava pelo fim ou pelo meio - talvez até pelo princípio, mas a manipulação cronológica e desconstrução narrativa deixava-nos tão à deriva quanto a torturada personagem de Guy Pearce, um homem que tatuava o corpo para preservar a memória.
Apesar do seu efeito de desorientação (ou por causa dele), "Memento" alcançou o estatuto de filme de culto e valeu a aclamação de Christopher Nolan como o realizador do, passe a expressão, momento - a revista americana "Premiere" de Junho apresenta-o como o "talento intemporal" de uma nova elite pronta a assumir os comandos de Hollywood. Trabalhando num território propício a exibicionismos formais, o "noir" ou "thriller", Nolan parecia destinado a seguir o percurso de um David Fincher, por exemplo, aplicando o mesmo jogo ilusório de filme para filme, mas "Insomnia" mostra-o mais contido no exercício de estilo.
Quer isto dizer que estamos longe de "Memento"? Sim, no que diz respeito à sua fórmula de narração estilhaçada: "Insomnia" segue uma lógica linear de acção, sem recuo nem reverso. Diz o realizador: "'Following' [primeira longa-metragem] e 'Memento' seguiam o mesmo conceito em termos de estrutura, eram filmes nos quais o espectador nunca se esquece de que está, de facto, a ver um filme. Tentei afastar-me disso."
O gesto poderá parecer arriscado, mas a explicação sê-lo-á menos: quando o sucesso de "Memento" lhe chegou aos ouvidos (depois das "majors" americanas se terem recusado a distribuí-lo por considerarem o filme "demasiado esperto"), Nolan já estava a filmar "Insomnia" no Canadá, apoiado, pela primeira vez, por um grande estúdio mas, acima de tudo, sob os auspícios de Steven Soderbergh (que, juntamente com George Clooney, é produtor executivo). Nolan tem repetido que Soderbergh foi um importante aliado no contacto com os estúdios - afinal, foi uma aproximação descomplexada ao "mainstream" que recolocou o realizador de "Erin Brockovich" na ordem do dia e identificou o seu lugar na indústria, depois de sucessivos desastres comerciais.
Um filme para Al Pacino
Natural, portanto, que se parta para "Insomnia" com alguma desconfiança? Tem um elenco de vedetas oscarizadas e é, sobretudo, veículo para uma delas, Al Pacino - podia ser para o veterano actor o que "Erin Brockovich" foi para Julia Roberts, uma viragem na tipificação de papéis, mas não é. Não há ironia nem depuração no tratamento da personagem de Pacino - e, já agora, do seu "carisma" de estrela -, pelo contrário: o seu detective parece um compêndio de maneirismos, como se olhasse no espelho e já só reflectisse a imagem do polícia obcecado de "Serpico" (1973) ou "Heat - Cidade Sob Pressão" (1995). Nem o deslocamento para uma paisagem estranha e polar, uma das singularidades de "Insomnia", serve para abalar a "aura" de Pacino: quando chega a uma pequena vila do Alasca para investigar o assassínio de uma jovem, Will Dormer (Al Pacino), reputado detective da polícia de L.A., é recebido por uma entusiasta e recém-formada agente local, Ellie Burr (Hilary Swank), que o segue como um discípulo a um mestre, repetindo os seus aforismos - de certa forma, Swank reproduz o olhar de Nolan sobre Pacino.
Um dos aforismos é digno de nota e está no centro do filme: "O bom polícia não consegue dormir porque lhe falta uma parte do puzzle. O mau polícia não consegue dormir porque a sua consciência não deixa". Will Dormer não consegue dormir, torturado pela claridade eterna do sol que nunca se põe. Mas o seu estado de permanente vigília, de insónia, reflecte, afinal, uma crispação interior: é um homem em perda, tentando ocultar o passado, mais perseguido pela sua consciência do que pela solução do crime que investiga. Culpa, expiação - Nolan cita "O Desconhecido do Norte Expresso" (1951), de Hitchcock, como uma das referências -, o dilema do bom/mau polícia: são temas sobejamente explorados no terreno do filme "noir" e não será por aqui que "Insomnia" tem algo a acrescentar ao género. Ainda para mais, "protegendo" a personagem de Pacino: é uma chantagem, inscrever no seu rosto as marcas sacrificiais - os olhos esbugalhados e dormentes, a palidez das noites em branco - para redimi-lo num final embaraçoso. Se a intenção de Nolan era deixá-lo numa zona de indefinição, fica tudo às claras, não é um filme "aberto" como "Memento".
"Blanc-noir"
Onde é que se pode, então, detectar o desvio de "Insomnia"? Na paisagem inóspita e branca do Alasca, adensada por um manto de nevoeiro ou expondo tudo a uma luminosidade clínica. Num cenário que lhe é estranho, o filme "noir" - a definição surgiu nos anos 40, explicitando o parentesco visual de uma série de filmes de ambiências nocturnas e urbanas - vê o seu habitual jogo de sombras e luz ser reconfigurado por uma eficaz aliança de neblina e claridade. Tratando-se de um "remake" de um filme homónimo norueguês (inédito entre nós), realizado por Erik Skjoldbjaerg em 1997, os créditos talvez não caibam inteiramente a Chris Nolan, mas há quem avance uma nova definição para "Insomnia": um filme "blanc-noir".
Seja como for, é também aí que reside a pista para reconhecer o mesmo autor de "Memento". Curiosamente, aquilo que afasta os dois filmes é também o que os aproxima: a manipulação do tempo. Sem o complexo dispositivo formal do anterior, "Insomnia" acaba por ter, também, um efeito de desorientação, confundindo dia e noite na sua perpétua claridade. É que, segundo Nolan, "a ironia de reiventar a roda e contar um filme de trás para a frente é que se começa a constatar quão sofisticadas são as convenções do cinema e de que forma permitem derrubar e confundir o tempo". Reconheça-se que não é propriamente uma descoberta: talvez Nolan precise de rebobinar um pouco a memória do cinema.